novembro 30, 2011

47. Textos! Textos!

Saíram os anais do XXVI Simpósio Nacional de História, realizado em São Paulo no mês de julho. Para quem se interessa por algum assunto histórico qualquer, ou quer se inteirar do que anda sendo pesquisado, é uma boa oportunidade - existem centenas de textos, sobre outros tantos assuntos diferentes (se a qualidade também varia muito, ainda não li o suficiente para dizer!). Eis o site.
Dos textos, um é meu. A história dos quadrinhos é um tema que me agrada muito, apesar de ainda não ter tido chance de continuar a pesquisa. Nesse primeiro momento, fiz uma comparação entre suas vertentes americana e japonesa, as principais do mundo até hoje. Aos interessados, o texto está aqui.

novembro 21, 2011

46. Resgatando o passado?

Depois de muita espera, saíram duas leis que trazem alguma esperança: a 12.527, que garante o acesso a informações públicas, e a 12.528, que cria a Comissão da Verdade destinada a investigar os abusos do governo militar.

A grande pergunta é: esses são passos no sentido da transparência governamental e da investigação honesta da verdade ou são mais dois pedaços de papel que não vão fazer diferença nenhuma?

Carlos Fico, em um post recente no seu blog, diz que "o que realmente importa é a pressão da sociedade". Ele está certo, obviamente, mas isso não é muito animador. O que me faz pensar isso? Para entender, acesse este texto do Reinaldo Azevedo e veja os comentários dos leitores. Eu sei de todos os estereótipos do leitor da Veja como um reacionário de classe média*, mas algumas coisas assustam.

* Como muitos estereótipos, esse tem um pouco de verdade e um tanto de exagero. Eu próprio leio a Veja de tempos em tempos e penso que, embora a cobertura de política externa deles - entre outras coisas - seja tendenciosa, a revista tem um lado mais positivo, como as infinitas denúncias contra os nossos políticos. E, em todo caso, ter uma linha política é um direito da publicação, apesar de eu preferir que ela se identificasse abertamente como uma revista socialmente conservadora e economicamente liberal ou o que fosse.

Voltando: lembrar que o golpe de 1964 aconteceu em um contexto de radicalização política crescente, e que muita gente na esquerda também não estava muito interessada em democracia é uma coisa. Outra bem diferente é achar que os militares salvaram o Brasil do comunismo. Na minha visão das coisas, tomar o poder, fazer as leis como bem entendiam, respeitar os direitos humanos só na medida em que não fosse muito inconveniente, censurar, torturar e matar, e chamar isso de salvação da pátria é um tanto estranho.

Na mesma linha, a Comissão da Verdade não é parcial só porque vai se concentrar nos abusos cometidos por agentes do governo. Os guerrilheiros não eram 100% bonzinhos, fizeram as suas sacanagens também? Sem dúvida. A pequena diferença é que esse pessoal já teve os seus atos investigados pelo governo militar. Agora, quem investigou os militares? Reconhecer que existe essa disparidade, que os dois lados abusaram mas um tinha infinitamente mais poder para isso que o outro, não significa necessariamente aprovar a república comunista que muitos guerrilheiros queriam criar. Vamos separar as coisas...

novembro 17, 2011

45. Jogando fora o passado

O resto do mundo não parece estar muito preocupado diante da notícia de que o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul está tomando medidas para destruir boa parte dos processos antigos sob sua guarda. Se é simples desconhecimento, a síndrome do "existem problemas maiores" (como se seres humanos funcionassem como o Windows 3.1, incapazes de se preocupar com várias coisas ao mesmo tempo), ou a outra síndrome do "não é problema meu", não sei.

Vou dar um voto de confiança nos leitores e supor que eles não estão preocupados por não saberem o que está acontecendo. Isso é fácil de resolver*. Vamos começar com a versão do próprio TJ/RS:

* Os leitores apressados e/ou preguiçosos podem pular para as conclusões finais...
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Classificação de processos para a eliminação
será realizada nos próximos meses

O Tribunal de Justiça vai realizar a avaliação dos processos que deverão permanecer guardados conforme uma tabela de temporalidade (Resolução nº 878/2011 - COMAG) já publicada oficialmente. Para o trabalho de preparar, cadastrar e classificar os processos que poderão ser descartados e os que deverão continuar guardados, a Justiça gaúcha contratou os serviços da CORAG – Companhia Rio Grandense de Artes Gráficas. Os trabalhos da empresa iniciarão nesta terça-feira (1º/11) . 
Atualmente, a Justiça guarda 13 milhões de processos judiciais já findos – 11 milhões já estão sob a responsabilidade do Arquivo Judicial. Há  ainda dois milhões que estão sendo enviados com origem nos Foros Judiciais na Capital e Interior do Estado. E todo o mês há milhares de novos processos destinados ao arquivamento
O contrato prevê que a empresa trabalhará 10 milhões de processos . A CORAG terá doze meses para concluir o trabalho, prorrogável por mais três. Está previsto que 288 pessoas, divididas em dois turnos de trabalho, das 7 às 13 e das 13 às 19 horas, coordenados por Bacharéis e estudantes de Direito, classificarão os processos que poderão ser descartados. Editais avisando os eventuais interessados do descarte serão publicados. Além disso, o Tribunal está articulando junto a sociedade civil, a participação de entidades interessadas em analisar preferencialmente os processos apontados para a eliminação.
O contrato tem o valor de R$ 4,3 milhões. Atualmente, o Arquivo Judicial está distribuído em cinco prédios em Porto Alegre. Três prédios são alugados de terceiros e custam ao Judiciário anualmente cerca de R$ 940 mil, contabilizados neste número os aluguéis, energia, IPTU e vigilância. Outros dois pertencem ao próprio Estado do Rio Grande do Sul.
Um dos objetivos do projeto é diminuir o custo de manutenção de imensas áreas de prateleiras, espaços que poderiam ter outras finalidades ou serem devolvidos aos seus proprietários. Outra grande prioridade, realça o Juiz-Assessor da 3ª Vice-Presidência do TJ, Jerson Moacir Gubert, é separar do bolo de processos, os de interesse histórico.
De qualquer forma, realça o magistrado, todos os processos que sobraram do grande incêndio que consumiu o Palácio da Justiça em 1949 serão preservados e são cerca de 250 mil. O critério seguinte, é separar por critério estatístico um determinado número de acordo com critérios pré-estabelecidos. A seguir, será aplicada a tabela de temporalidade. E, além disso, lembra o Juiz Gubert, os magistrados envolvidos no processo também podem assinalar que a guarda permanente ou por determinado tempo é de interesse público.
Entendemos que após estas etapas, todos os processos destinados à eliminação ainda poderão ser examinadas por historiadores ou integrantes de entidades como os de defesa dos direitos humanos, por exemplo, para verificarem se há interesse, disse. Nosso interesse é que seja um procedimento com o máximo acompanhamento da sociedade, reafirmou o magistrado.  E registrou que o TJ está realizando encontros com historiadores e entidades interessadas para que seja construída uma participação efetiva da sociedade.
O Juiz Gubert ressalta ainda que o trabalho a ser realizado pela CORAG juntamente com servidores do Tribunal e até com a participação da sociedade, redundará em melhores condições de pesquisa para os processos que permanecerem em guarda temporária ou permanente, viabilizando-se o resgate da nossa história – o que nas condições de hoje não é possível pois estão apenas depositados, sem condições de buscas por assuntos ou localização.

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No dia 27.10.2011 foi divulgado oestabelecimento de convênio entre o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul ea empresa CORAG (gráfica do Estado do RS) para dar início a um processo deeliminação de documentos históricos do seu respectivo Acervo:
http://www.corag.com.br/index.php?option=com_k2&view=item&id=299%3Acorag-e-tribunal-de-justi%C3%A7a-firmam-contrato-in%C3%A9dito-no-pa%C3%ADs&Itemid=135&lang=pt
http://www.tjrs.jus.br/site/imprensa/noticias/?idNoticia=158533
Serão analisados cerca de 10 milhões de processos e segundo o Tribunal um dos objetivos é "diminuir o custo de manutenção de imensas áreas de prateleiras e espaços que poderiam ter outras finalidades". É informado ainda que "o Tribunal está articulando junto à sociedade civil a participação de entidades interessadas em analisar preferencialmente os processos apontados para a eliminação" e "encontros com historiadores e entidades interessadas para que sejaconstruída uma participação efetiva da sociedade".
Porém informações relativas a este processo parecem não estar sendo devidamente publicizadas. Frente aosinúmeros casos de perda de documentação histórica no nosso país manifestamos forte preocupação com os destinos do acervo documental ainda a ser exploradopelos pesquisadores e sociedade em geral.
Segundo Parágrafo Único daResolução n.º 777/2009-COMAG que dispõe sobre a guarda, eliminação de autos e tabela de temporalidade dos processos judiciais referente ao Judiciário do RioGrande do Sul, "Todos os processos que contenham documentos históricos ouque por sua natureza e conteúdo fático interessem de qualquer forma à história e ao perfil psicossocial da época ou pela importância dos sujeitos parciais envolvidos passarão a integrar o Acervo Histórico do Judiciário".
Porém outra resolução publicada em 2011 (Resolução n.º 878/2011-COMAG) só garante a guarda total de documentosproduzidos até 1950. De acordo com tal resolução disponível no sítio do TJRS,apresenta-se uma tabela de temporalidade – feita de acordo com critérios questionáveis sem incluir os historiadores – que condena à eliminação testamentos, inventários, mandatos de segurança, diversos documentos administrativos e fundiários, documentação referente a direito de família e previdenciário, atos infracionais. Conforme o divulgado, atuarão nesse processode seleção do que será eliminado, estagiários em Direito e de Ensino Médioorientados pelos parâmetros da resolução.
Todos nós sabemos o quanto a documentação desta natureza foi importante para a renovação da historiografia brasileira. O que parece estar se desenhando é uma perda inenarrável para a história de nosso estado e nosso país, obstaculizando em muito a escrita da história social do Rio Grande do Sul da segunda metade do século XX.

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Agora, a opinião de um historiador que acha a iniciativa do TJ necessária:


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SOBRE O ACERVO DO TJRS E A DESINFORMAÇÃO



PORTO ALEGRE (informem-se!) | Desde ontem à noite, recebi vários emails e recados contendo a seguinte petição pública:
Abaixo-assinado PELA PRESERVAÇÃO DO ACERVO DO TJ-RS
Para: Tribunal de Justiça do RS; CORAG; Ministério Público do RS
Nós, estudantes de História, historiadores, pesquisadores e demais cidadãos interessados, abaixo assinados, frente à última resolução do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul – TJRS (Resolução 878/2011-COMAG) que eliminará parte do acervo documental sob sua guarda datado a partir dos anos 1950, vimos através dessa petição solicitar ao TJRS:
1. A imediata revisão das medidas – incluindo o contrato recentemente firmado com a CORAG em 27.10.2011 – que promoverão, através da análise de 10 milhões de processos, a seleção para descarte de boa parte desse acervo especificado na resolução 878/2011;
2. Permitir que os historiadores, através de sua associação e instituições de ensino superior, sejam incorporados na discussão sobre o destino dos processos do TJRS, de maneira a debater formas de preservar as informações dos documentos a serem descartados;
3. Que o TJRS comprometa-se a não tomar nenhuma medida de eliminação dos processos citados na referida resolução até que uma solução em comum acordo seja estabelecida, levando-se em conta o caráter público dessa documentação e seu valor histórico.
Os signatários
O texto não é claro e, por isso, merece algumas explicações: há cerca de três meses, o poder judiciário gaúcho decidiu que a situação de seus arquivos chegara ao limite. Com 11 milhões de processos espalhados por cinco locais diferentes de Porto Alegre (quatro deles locados especialmente como depósitos de papéis), o TJRS entendeu que é inviável seguir armazenando documentos sem a implantação de uma eficaz política de gestão, catalogação e desclassificação documental – palavras que, no jargão arquivístico, são a base da “oxigenação” de qualquer acervo.
Decidiu-se, então, pelo descarte dos papéis. Ou seja: a destruição.
Contudo, numa atitude mais do que digna de aplausos, o mesmo poder judiciário compreendeu que, certamente, muitos de seus 11 milhões de processos contém registros históricos de valor inestimável – e sobre diversos temas. Como resultado, os juristas decidiram convidar historiadores, arquivistas, sociólogos e outros membros da sociedade civil para formar uma comissão responsável por definir, num trabalho conjunto, o que fazer com cada um dos documentos arquivados.
Sabendo desta história, não pude deixar de me surpreender com o abaixo-assinado lançado ontem.
Primeiro, porque, além de incompleto e mal escrito, trata-se de um texto que não condiz com a verdade. Seu autor(es) carece(m) de informação. Mais: quem quer que tenha sido o criador da petição, trata-se de alguém cuja noção de responsabilidade diante desta discussão não está bem clara.
Por conseguinte, lamento informar que os demais “abaixo-assinados” estão repetindo a mesma desinformação e irresponsabilidade.
Dito isto, vamos aos pontos da petição:
1) O abaixo-assinado pede que “medidas” que promoverão “a seleção para descarte” sejam revistas. Só que a minuta que institui a Comissão Interdisciplinar para Avaliação de Processos Judiciais Aptos a Descarte, documento lançado hoje (fruto de várias semanas de discussões, inclusive com a participação de vários historiadores), prevê que esta mesma comissão será responsável por “indicar critérios para a definição de processos judiciais aptos a descarte”. Ou seja: não existem medidas a serem revistas, porque simplesmente elas ainda nem foram discutidas – trabalho que será feito pelos membros da própria Comissão. O papel da CORAG, uma das destinatárias do abaixo-assinado, será apenas o de higienizar, catalogar e repassar a integridade dos processos para a equipe de análise – chefiada pela Comissão e possivelmente composta por profissionais das áreas de Arquivologia e História. A mesma CORAG deverá criar um banco de dados onde constarão as informações fundamentais dos processos revistos (tanto os que serão descartados, quanto os futuros arquivados). Além disso, processos referentes a crimes sequer serão analisados, posto que já há uma definição anterior proibindo seu descarte;
2) O segundo ponto do abaixo-assinado clama pela participação de historiadores na Comissão que discutirá o descarte da documentação. Só que a mesma minuta que estabelece a criação deste grupo – repito: lançada hoje – prevê também que, dos nove membros da Comissão, quatro serão historiadores (um representante do Tribunal do Judiciário, dois professores universitários e o presidente da Associação Nacional de História). Aliás, nenhum outro segmento profissional estará tão presente na Comissão. Portanto, o segundo pedido da petição também é fruto de desinformação e seu argumento não se sustenta;
3) O último ponto clama que o TJRS não tome “nenhuma medida de eliminação dos processos (…) até que uma solução em comum acordo seja estabelecida”. Creio que não é preciso repetir que a Comissão Interdisciplinar para Avaliação de Processos Judiciais Aptos a Descarte serve justamente para esta função.
Agora, algumas breves reflexões:
Muito me espanta ver um abaixo-assinado sendo firmado por algumas dezenas de pessoas sem que estes mesmos indivíduos conheçam os parâmetros mínimos dos que é debatido. Mais ainda, quando são historiadores. Hoje pela manhã, analisando o “frisson” causado pela petição, não pude deixar de lamentar que pessoas minimamente instruídas ainda caiam na mesma rede de malha grossa que “pesca” aqueles que não têm e não buscam informação.
Historiadores caindo no oba-oba do senso comum é o fim da picada. E o pior: acontece cada vez mais.
Uma rodada rápida pelo Google mostra os desdobramentos de cada reunião promovida pelo TJRS na preocupação de manter, preservar e tornar pública sua gigantesca documentação. A lei prevê – e, a propósito, acho muito válido que ela seja discutida – que o poder judiciário pode eliminar seus documentos sem consulta a quaisquer instâncias, desde que passados os prazos legais. Portanto, a atitude dos juristas, neste caso, é mais do que elogiável. Afinl, em condições “normais”, nós sequer saberíamos da existência destes 11 milhões de processos e de suas prováveis potencialidades de pesquisa.
Por último, uma observação rápida de um historiador que há sete anos transita pelo mundo da arquivologia: descartar documentos é tarefa fundamental. Sempre haverá alguém dizendo que “tudo é História” e que “todos os documentos têm seu valor”. Quem pensa assim não está de todo errado, como também estão certos os arquivistas que, a partir de trabalhos integrados com pesquisa histórica, podem proceder com a eliminação daquelas fontes que só em casos muito específicos seriam pesquisadas pela historiografia. Um exemplo simples elucida a questão: dos 11 milhões de processos arquivados pelo TJRS, mais de 50 mil referem-se a ações judiciais contra o trio CRT/Brasil Telecom/Oi, documentos repetitivos que obedecem a uma mesma característica e que, muito pouco provavelmente, serão pesquisados por historiadores algum dia. O descarte destes e de outras centenas de processos semelhantes (mantendo exemplares de amostragem, como requer a praxe arquivística) é vital para a própria sobrevivência do acervo. Como ratifica bem o documento que institui a Comissão de Avaliação do TJRS, este processo será feito por gente qualificada o suficiente para definir tais ações.
E não como uma queima geral da documentação, como faz crer o desinformado abaixo-assinado que meus colegas historiadores – mais mal informados ainda! – estão divulgando.

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Finalmente, a manifestação da Associação Nacional de História:



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Porto Alegre, 11 de novembro de 2011.
Exmo. Sr. Desembargador Leo Lima
Presidente do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul

A Associação Nacional de História (ANPUH), sua seção Rio Grande do Sul (ANPUH-RS) e os representantes dos Cursos Superiores de História do estado consideram altamente meritória a iniciativa do Poder Judiciário, que buscou consultar os profissionais da área da História para discutir esse importante processo de organização e preservação da massa documental acumulada, e que consideramos de imenso e insubstituível valor para o conhecimento de nossa sociedade, através dos registros armazenados no Arquivo Judicial desse Tribunal. Compreendemos, também, a necessidade de uma administração adequada desses conjuntos documentais, na medida em que seu volume excessivo consome recursos que sempre são reduzidos, face aos investimentos que se precisa fazer para responder à demanda da sociedade, que vê na Justiça o espaço correto para a resolução de conflitos.
No entanto, entendemos que a forma com que se está desenvolvendo essa proposta não é adequada, pois impede uma consideração apropriada do significado social desses documentos. Eles são importantes para que se possa interpretar os processos históricos vivenciados no nosso Estado, o que se dá através do contato com tais informações ali coligidas. Além disso, é fundamental destacar que o Judiciário não é o proprietário dessa documentação, sendo somente seu guardião, pois estes documentos, na verdade, pertencem a todo a sociedade. Assim, querer dispor desses processos através de medidas extremas atenta contra essa perspectiva, podendo causar prejuízos irreparáveis a todos os que se interessam pela História e pela cidadania.
Entendemos também que não podemos ser convocados a realizar uma atividade limitada, desenvolvida somente no final dos procedimentos administrativos, numa proposta que pretende exigir do profissional da História a escolha e preservação dos documentos ditos “interessantes”, pois isso, além de contrariar tudo o que se tem preconizado na historiografia das últimas décadas, ainda atenta contra o bom senso, na medida em que impede quaisquer critérios objetivos para sua execução, pois o que pode ser um critério “interessante” para um profissional, pode não ser para outro, e vice-versa. Por fim, também não guarda nenhuma lógica com procedimentos operacionais adequados, já que significa nova revisão do conjunto documental, que foi anteriormente avaliado para se identificar outros requisitos.
Tendo em vista o exposto até o momento, os historiadores aqui representados optam por não participar da comissão interdisciplinar proposta sem as garantias de atendimento as nossas reivindicações e de que essas poderão influenciar concretamente no processo de avaliação, preservação e descarte dos documentos custodiados pelo Tribunal.
Outrossim, nos propomos a participar, neste momento, da avaliação da tabela de temporalidade sugerida pelo CNJ, juntamente com arquivistas e outros profissionais específicos, adquirindo subsídios sobre as tipologias documentais geradas pelo Poder Judiciário em seu funcionamento, para, com uma noção mais clara do acervo custodiado pelo TJ/RS, podermos propor efetivas regras de arranjo, descarte ou guarda permanente.
Aproveitamos para sugerir ao Tribunal que, o mais breve possível, promova concurso público para a contratação de profissionais da área de História, capazes de participar da gestão documental da instituição, bem como a disponibilização adequada dos documentos aos pesquisadores e à sociedade em geral.
Como contribuição, apresentamos as seguintes proposições a serem desenvolvidas pela Equipe Técnica do Tribunal de Justiça, a fim de obter nosso apoio a essa atividade:
- Efetuar ampla reorganização da documentação, visando sua correta identificação e classificação, ANTES de se proceder a qualquer descarte;
- Propor a revisão, por parte de profissionais da área da História, da Tabela de Temporalidade sugerida pelo CNJ, na medida em que essa é apenas uma recomendação, que pode ou não ser aceita pelos demais Tribunais. Cabe lembrar que um instrumento desse porte, elaborado em nível nacional, é incapaz de atender aos diversos fenômenos regionais, os quais encontram-se registrados na documentação produzida pelo Poder Judiciário gaúcho;
- Consultar, por meio de manifestação oficial, a Comissão Setorial do Sistema de Arquivos do Estado do Rio Grande do Sul (SIARQ/RS), que tem como determinação legal o dever de se pronunciar a respeito dos procedimentos arquivísticos a serem adotados em todo o Estado do Rio Grande do Sul;
- Apresentar, por meio de Projeto adequado, o Programa de Trabalho de Organização de Acervos Arquivísticos do Poder Judiciário, prevendo as atividades, os procedimentos e, principalmente, os recursos a serem destinados a esse Programa, de modo a permitir um planejamento adequado para a destinação definitiva dessa documentação. As proposições acima tem como objetivo permitir ao Judiciário uma agenda positiva de tratamento dessa documentação, considerando-se que há perspectivas de redução significativa dos recursos dispendidos pelo Poder Judiciário, em função de se estar adotando o Processo Eletrônico. Essa redução de custos, inclusive, poderia ser reinvestida nessa atividade, produzindo um resultado efetivo e qualificado para a questão, fomentando procedimentos que ofereçam à nossa sociedade um ganho em termos de pesquisa e produção de conhecimento.
Colocamo-nos à disposição para continuarmos debatendo esse tema, de modo a encontrar uma solução equilibrada, justa e adequada para todos, que permita ao Judiciário resolver suas dificuldades nesse campo de ação, mas que impeça prejuízos danosos à memória da sociedade gaúcha, o que com toda a certeza não deve ser o objetivo de Vossa Excelência. Temos a clareza de que tais esforços serão recompensados no futuro, no momento em que nossas ações no presente se tornarem também objeto de consideração por parte de nossos descendentes, sejam eles historiadores, operadores do direito ou cidadãos em geral.
Atenciosamente,
Benito Schmidt Presidente da ANPUH (Gestão 2011-13)
Zita Possamai Presidenta da ANPUH-RS (Gestão 2010-12)

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Resumindo toda a situação, para quem pulou para o final só para ler as conclusões:  o TJ quer descartar processos para liberar espaço e diminuir gastos. Não seria uma queima geral: existem alguns critérios a seguir, e em tese seriam preservados os documentos de "valor histórico".
O pequeno grande problema é que, ao elaborar os critérios de seleção, ninguém se deu ao trabalho de perguntar antecipadamente aos historiadores o que nós consideramos valor histórico...
Minha pesquisa atual lida com processos (que só não foram destruídos por terem sido recolhidos a um arquivo universitário), o que me deixa incomodado com a perda de dados que virá. De um pequeno conjunto de autos de crimes sexuais não violentos (sedução e coisas parecidas), estou extraindo informações sobre padrões de moralidade, atitudes diante da sexualidade e do casamento e a tendência de certos grupos sociais de recorrer mais à Justiça do que outros em determinadas situações. Não estou reinventando a roda, mas seguindo linhas de pesquisa que, no Brasil, tem menos de 30 anos. Ou seja, se fizessem esse descarte no início dos anos 80, quando ainda não se pensava em olhar os processos criminais em busca de informações sobre a história da sociedade, essa pesquisa poderia ser impossível de realizar. E quem sabe o que vai fazer falta daqui a 30 anos?
Da minha parte, as sugestões da ANPUH parecem acertadas: primeiro, organizar e classificar o acervo e rever, com consulta a historiadores, os critérios de descarte. Depois, pensar em descartar.
Como isso significaria mais gastos para o TJ, acho pouco provável que aconteça.

outubro 26, 2011

44. Às vezes, um relógio parado...

... marca a hora certa. E de vez em quando nossos legisladores fazem a coisa certa:

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Senado rejeita sigilo de documentos por prazo indefinido

Após meses de polêmica em torno da possibilidade de sigilo por tempo indefinido para documentos oficiais, o Senado aprovou nesta terça-feira (25) o Projeto de Lei da Câmara (PLC) 41/10, conhecido como Lei de Acesso às Informações Públicas. A proposta foi aprovada com a alteração feita pelos deputados para restringir o número de prorrogações permitidas do sigilo. De acordo com o texto, que segue para sanção presidencial, o sigilo poderá durar, no máximo, 50 anos.
Originalmente, o texto, enviado ao Congresso pelo então presidente Luiz Inácio Lula da Silva, previa a possibilidade de sucessivas prorrogações do prazo de 25 anos de sigilo dos documentos classificados como ultrassecretos.Na Câmara, os deputados alteraram o projeto para que o prazo só pudesse ser prorrogado uma vez.
No Senado, o senador Fernando Collor (PTB-AL) apresentou Substitutivo que recuperava a proposta original do Executivo, ao estabelecer exceções, com possibilidade de prorrogações ilimitadas, em casos de documentos ultrassecretos ou cujo sigilo fosse imprescindível à segurança da sociedade e do Estado. O substitutivo foi rejeitado nesta terça.
Ao defender sua proposta, Collor negou que o texto tivesse a intenção de permitir o sigilo de documentos por prazo indefinido, o que foi alvo de crítica de alguns senadores.
- Em nenhum texto do nosso substitutivo vão encontrar o termo sigilo eterno. Encontrarão, sim, o que a gente encontra em toda legislação da União Europeia, dos Estados Unidos, de qualquer país, de salvaguardar os interesses dos estados nacionais, no caso, do Estado brasileiro - argumentou Collor, antes da rejeição do seu substitutivo.  

Objeção ao substitutivo 
Collor foi relator da matéria na Comissão de Relações Exteriores e Defesa Nacional (CRE). Com a aprovação do pedido de urgência para a votação da matéria, seu relatório seguiu para o Plenário, após o projeto ter tramitado nas Comissões de Constituição, Justiça e Cidadania (CCJ), Direitos Humanos e Legislação Participativa (CDH) e Ciência, Tecnologia, Inovação, Comunicação e Informática (CCT). Os relatores do projeto nessas comissões, os senadores Demóstenes Torres (DEM-GO), Humberto Costa (PT-PE) e Walter Pinheiro (PT-BA), respectivamente, manifestaram-se contra o substitutivo.
Apesar de elogiar o trabalho que levou ao substitutivo, Demóstenes Torres disse considerar que o país poderia ousar mais e ressaltou que, caso se prove mais tarde a necessidade de prorrogação indefinida, será possível aprovar uma "legislação de emergência" para fazer os reparos necessários. Walter Pinheiro, por sua vez, previu que, em 50 anos, com a velocidade no processamento das informações, o prazo de sigilo já terá sido novamente reduzido por lei.
Humberto Costa, também líder do PT no Senado, disse preferir a definição de um limite ao sigilo para documentos públicos. Como a presidente Dilma Rousseff declarou apoiar o fim das prorrogações ilimitadas, a bancada do governo foi liberada para decidir em que versão do projeto votar.
- A proposta restabelecida, com todo o respeito pelo presidente Collor, representa um retrocesso em relação ao que veio da Câmara. Não há como produzir qualquer tipo de embaraço ao país depois de 50 anos, contado a partir da aprovação dessa legislação - disse.

Prazos 
O PLC 41/10 estabelece que os documentos classificados como ultrassecretos terão o prazo atual de sigilo reduzido de 30 para 25 anos, com a possibilidade de uma única prorrogação. A contagem começa na data em que os documentos são produzidos. Os documentos classificados como secretos terão prazo de 15 anos de sigilo, e os reservados terão prazo de 5 anos. O texto não prevê a classificação confidencial existente na legislação em vigor, o que, segundo Collor, poderá gerar problemas.
- A eliminação do grau de sigilo confidencial provocaria grande confusão relacionada à reclassificação dos documentos já existentes. Ora, a maioria dos documentos classificados o é como confidencial. Sob uma perspectiva prática, teríamos um verdadeiro caos instalado para o tratamento dos atuais documentos confidenciais - advertiu o senador.
De acordo com o projeto, qualquer pessoa interessada poderá apresentar pedido de acesso a informações detidas pelo Poder Público, bastando que, para isso, se identifique e especifique a informação requerida. O órgão responsável deverá conceder o acesso imediato à informação disponível ou informar a data em que isso poderá ocorrer. Caso o acesso não seja possível, deverão ser indicadas as razões da recusa. Se o motivo for o caráter sigiloso da informação, caberá recurso à autoridade competente, que terá cinco dias para se manifestar.
O serviço de busca e fornecimento da informação será gratuito e as transgressões cometidas por agentes públicos no fornecimento de informações poderão ser punidas de acordo com o que estabelece a Lei 1.079/50, que trata dos crimes de responsabilidade, e a Lei 8.429/92, que trata da improbidade administrativa.

Estados e municípios
As normas estabelecidas pela lei em que o projeto for transformado deverão ser observadas pela União, estados, Distrito Federal e municípios. Em relação à esfera federal, o cidadão poderá recorrer da decisão ao ministro de Estado da área específica. Será permitido ainda um último recurso perante a Comissão Mista de Reavaliação de Informações, criada pelo projeto, que terá prazo de cinco dias para se manifestar sobre o assunto. Pode-se, também, pedir a essa comissão que uma informação deixe de ser classificada como secreta ou ultrassecreta.
A comissão funcionará na Casa Civil da Presidência da República e será composta por ministros de Estado e integrantes indicados pelos Poderes Legislativo e Judiciário, que terão mandato de dois anos. Além de poder ser acionada por pessoas interessadas, essa comissão deverá rever, a cada quatro anos, a classificação de informações secretas ou ultrassecretas guardadas pelo Poder Público. Caso esse prazo deixe de ser cumprido, o documento deixará de ser considerado sigiloso automaticamente.

Presidente e vice
De acordo com o projeto, as informações que puderem colocar em risco a segurança do presidente e do vice-presidente da República, de seus cônjuges e filhos, serão classificadas como reservadas. Tais informações deverão ficar sob sigilo até o término do mandato em exercício ou do último mandato, em caso de reeleição.
A proposição trata ainda das informações pessoais, estabelecendo que o tratamento a essas questões deverá ser feito de forma transparente e com respeito à intimidade, vida privada, honra e imagem das pessoas, bem como às liberdades e garantias individuais. Essas informações terão acesso restrito, independentemente da classificação de sigilo, pelo prazo de cem anos, a contar da data de sua produção. Quem tiver acesso a tais informações será responsabilizado por seu uso indevido.
O projeto fixa prazo de 60 dias, a contar da vigência da lei em que for transformado, para que os dirigentes de órgãos e entidades da administração pública federal direta e indireta possam assegurar o cumprimento das novas normas. Estabelece ainda que o Executivo deverá regulamentar a lei em que o projeto for transformado no prazo de 180 dias, a contar da data de sua publicação.
Isabela Vilar e Helena Daltro Pontual / Agência Senado

outubro 15, 2011

43. Arte paleolítica

 Um artigo interessante e bem ilustrado da Folha de ontem. Algumas notas no final:

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Arqueólogos acham mais antigo ateliê do mundo na África do Sul

RICARDO BONALUME NETO
DE SÃO PAULO

O mais antigo ateliê de pintura da Terra foi achado em uma caverna sul-africana. Os pintores de 100 mil anos atrás eram fãs de uma tinta ocre, com tons que variam entre vermelho, marrom e amarelo, armazenada em "paletas" feitas de conchas marinhas.
Os artistas primitivos usavam pigmentos de origem mineral e davam predileção a cores que, segundo as especulações dos pesquisadores, lembravam a vida cotidiana, seja pelo sangue das caçadas, seja pela fertilidade, ligada à menstruação no imaginário dos povos antigos.


Magnus Haaland/Associated Press
Vista do mar a partir do interior da caverna de Blombos
Vista do mar a partir do interior da caverna de Blombos

SEM FASE AZUL
Teriam entendido plenamente o "período rosa" de pinturas do espanhol Pablo Picasso (1881-1973), que durou de 1904 a 1906; não entenderiam, nem teriam como imitar, a "fase azul" anterior, por falta de pigmentos -ou talvez de interesse. Os pesquisadores associam a descoberta do antigo ateliê à própria evolução do pensamento humano.
Pintamos, logo pensamos. O ocre está disponível em óxidos de ferro, no solo, e pode servir tanto para pinturas murais quanto corporais. A "tinta" seria até um primitivo protetor solar para a pele.
"A capacidade conceitual de amostrar, combinar e armazenar substâncias que aperfeiçoam a tecnologia ou as práticas sociais representa um marco na evolução da cognição humana complexa", escreveram os pesquisadores na edição de hoje da revista americana "Science". A equipe, liderada por Christopher Henshilwood (professor da Universidade de Bergen, Noruega, e da Universidade de Witwatersrand, na África do Sul) encontrou o "ateliê" na caverna de Blombos, 300 km a leste da Cidade do Cabo. Francesco d'Errico, da Universidade de Bordeaux, na França, coordenou a datação do material encontrado por lá.
O ocre, as ferramentas de pedra para sua produção e as conchas foram achados já em 2008, mas desde então a equipe trabalhou para se certificar das datas.
A análise do interior das conchas, onde a "tinta" ocre era misturada, revelou traços do que poderia ser a ação de dedos humanos durante o processo de preparar o produto para o uso.
Os pesquisadores identificaram dois "kits de ferramentas" usados para a produção da tinta. Pela ausência de outros tipos de detritos comuns em cavernas habitadas por seres humanos nessa camada, como restos de animais, eles especulam que um grupo de pessoas esteve ali "por um dia ou dois, no máximo", diz Henshilwood.
A caverna, cuja habitação começou há 140 mil anos, tem se revelado um grande tesouro de achados ligados à evolução cultural humana.



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Talvez o leitor esteja pensando que a descoberta é interessante, mas sem saber muito bem o que a torna importante. A importância dessa caverna sul-africana está no fato de ela dar mais um golpe no modelo vigente da evolução humana recente - o da "revolução do paleolítico superior".

Explicando: segundo esse modelo, o ser humano anatomicamente moderno, fisicamente indistinguível de nós, surgiu na África há cerca de 200 mil anos atrás. Porém, até recentemente, não se conheciam evidências de comportamento culturalmente moderno - linguagem, pensamento simbólico, arte, qualquer dessas coisas que mostrasse uma capacidade de pensamento comparável à nossa - até aproximadamente 40 mil anos atrás, data das mais antigas estatuetas e arte rupestre europeias (como o gráfico do artigo mostra).
Então, diz o modelo, num primeiro momento surgiram seres humanos anatomicamente modernos, mas só muito mais tarde aconteceu alguma coisa que expandiu drasticamente sua capacidade mental - uma mutação que possibilitasse a linguagem, ou algo semelhante. Como o período iniciado há 40 mil anos é classificado como "paleolítico superior", essa súbita explosão criativa seria a revolução do paleolítico superior.
O pequeno problema - quase sempre existe um - é que, como a arqueologia se desenvolveu como ciência na Europa, é ali que haviam sido feitas a maior parte das buscas e escavações, enquanto o resto do mundo engatinhava nesse sentido até recentemente. Assim, era mais provável que se descobrissem sinais de comportamento moderno na Europa, que estava sendo escavada de um lado a outro, que em qualquer outro lugar, independentemente de onde esse comportamento realmente surgiu.
Nos últimos anos, as pesquisas na África tem mostrado que a arte é muitos milênios mais antiga do que se pensava. Tudo indica que a teoria de um desenvolvimento mental súbito vai por água abaixo, substituído por avanços graduais de longa antiguidade. Mas vão ser precisos vários novos achados como o de Blombos e muita discussão entre os arqueólogos para que se chegue a um novo consenso...















setembro 28, 2011

42. Artigo - curandeirismo

Com o começo do I Congresso Internacional de História Regional da UPF, foram publicados os anais eletrônicos do evento, com um texto deste que vos escreve. Minha contribuição trata da história do curandeirismo no Brasil e um estudo de caso.

Aos interessados, os anais do evento: http://www.upf.br/historiaregional/index.php?option=com_content&view=article&id=18&Itemid=21

Aos ainda mais interessados, farei a apresentação amanhã de manhã. Quem vier, verá...

setembro 13, 2011

41. A casa de Hitler nas montanhas - tombar ou destruir?

Para quem acha que o passado está morto, vai um exemplo de como ele segue vivo.

Apenas duas observações rápidas:

- Particularmente, sou a favor de manter o lugar. A monstruosidade do nazismo é importante demais para ser esquecida e, de certa forma, um lugar aparentemente tão inocente quanto Berghof faz parte do Terceiro Reich tanto quanto os campos de concentração. Afinal, parte da lição do nazismo é precisamente essa: Hitler não era um sujeito obviamente mau como o imperador Palpatine de Star Wars, que qualquer um percebe que não quer boa coisa. Ele podia parecer uma pessoa normal, um cara que gostava de sua dieta vegetariana, de cachorros, de passar uns dias na serra... e de ordenar a morte de milhões de pessoas. Os ditadores genocidas têm mais chance de ter a cara de Hitler que a de Palpatine, e não podemos esquecer isso de jeito nenhum. Então, se Berghof puder servir de lembrete, que fique lá.

- Quem seguir o link para a matéria original no Yahoo encontrará entre os comentários vários que defendem Hitler e o nazismo. Alguns poderiam dizer que é um horror deixar esses malucos pregando uma ideologia tão nociva - de fato, fazer defesa do nazismo é contra as leis brasileiras. Acho que aqui a lei erra, pois ver os neonazistas falando é a melhor garantia que temos de que o nazismo não volte: a cada frase que soltam, suas ideias parecem mais e mais absurdas e incoerentes...



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Uma montanha bávara à sombra de Adolf Hitler



Sessenta e seis anos após sua morte, a alma de Adolf Hitler assombra ainda hoje uma montanha da Baviera - os alemães não sabem o que fazer dos vestígios de sua casa; e alguns não a querem como curiosidade turística, nem como memorial.


A antiga residência de Hitler nos Alpes.

Bombardeada, dinamitada, desimpedida com máquinas, não resta muito de "Berghof", a residência favorita do Führer nos Alpes, que frequentava regularmente durante mais de dez anos antes da morte, num bunker em Berlim, em 1945.
As autoridades evitam indicar o caminho, e é só quando se está no local que se descobre, num desvio da pista de cascalhos, no meio de uma floresta de pinheiros, um pedaço cinzento de muro, meio perdido na montanha, acompanhado de um quadro explicativo.
É o único vestígio que leva à casa que conhecemos, principalmente, através de filmes amadores, que mostravam um Hitler sorridente no terraço, ao lado de Eva Braun, tendo ao fundo a paisagem idílica.
Situada a meio caminho de Oberzalsberg, a montanha que domina a aldeia de Berchtesgaden, na fronteira germano-austríaca, o lugar serviu de estada para os soldados americanos de infantaria, GI's, antes de sua partida, em 1995.


Fachada de 'Berghof', na montanha de Berchtesgaden

"Quando os americanos estavam lá, não havia problemas," afirma Ingrid Scharfenberg, 80 anos, que dirige desde o final da guerra a pequena pensão "Zum Türken" bem ao lado de Berghof, e que, hoje, está mal acomodada, em relação à notoriedade da vizinhança.
"As pessoas dizem que esta é a montanha nazista e que todos em Berchtesgaden são nazistas. Mas não se pode detestar dez gerações simplesmente porque (Hitler) viveu aqui", comenta ela.
"Não há peregrinações neonazistas aqui", assegura por sua vez o diretor da agência de turismo, Michael Griesser.
"Os neonazistas são raros", afirma Axel Drecoll, 36 anos, historiador do Centro de Documentação de Obersalzberg, que apresenta uma exposição sobre Hitler e a ditadura nazista.
Acontece que, junto da casa, "um pequeno número de pessoas acendem, em segredo, velas e depositam flores, por ocasião do aniversário, ou para lembrar a morte" do ditador, acrescenta ele. Mas tudo é recolhido e jogado fora pelo porteiro do Centro, que fica próximo.
Se o caminho em direção à residência de Berghof permanece quase confidencial, não acontece o mesmo com a estrada que leva ao "Ninho da Águia", um chalé construído pelos nazistas no pico de uma montanha vizinha, oferecido de presente a Hitler pelo seu aniversário de 50 anos.
Às dezenas de milhares, os turistas pegam uma rota vertiginosa para beber aí uma cerveja e admirar a paisagem espetacular.
Para alguns, a aura do ditador envenena menos o Ninho da Águia do que a casa de Berghof, porque Hitler sentia vertigens, e ia pouco lá.
Para evitar qualquer curiosidade doentia, o Estado da Baviera retirou de helicóptero, do Ninho da Águia, alguns móveis de época que ainda estavam no local.
Numerosos historiadores, entre eles Egon Johannes Greipl, chefe do Departamento bávaro de Monumentos Históricos, gostariam de ver tombados todos os sítios nazistas da região.
"Ninguém pensaria em demolir as ruínas de Olímpia (na Grécia) a pretexto de que tudo ficaria mais bem apresentado num Centro de documentação", afirma Greipl. "São testemunhas in loco da História", que falam de um período crucial e de um fato, os crimes nazistas".
Greipl considera incoerente que a Baviera tenha incluído, secretamente, durante décadas, esses locais numa lista de sítios históricos protegidos, antes de decidir "por motivos políticos" varrê-los do mapa.
"Atribuir um estatuto cultural particular à casa Berghof" e a outras ruínas nazistas, entre elas 12 quilômetros de bunkers e de túneis sob a montanha, "serviria apenas para encorajar a construção de uma espécie de trilha do nacional-socialismo", replica Walter Schön, funcionário local encarregado do patrimônio e número dois do ministério da Justiça da Baviera.
Charlotte Knobloch, dirigente da comunidade judaica de Munique, lamenta igualmente qualquer ideia de tombamento.
"De qualquer forma, não resta nada" de Berghof e é preciso evitar fazer da casa um alvo de peregrinação neonazista, segundo ela.
Drecoll, por sua vez, tem menos medo de atrair grupos de extrema-direita do que ver os locais desvirtuados numa espécie de "Disneilândia do nazismo", fora do contexto histórico.
"Claro, é preciso satisfazer a curiosidade dos turistas, mas sem cair no sensacionalismo", diz ele. A grande dificuldade é evitar que "a pesquisa histórica ceda lugar ao kitsch comercial".

setembro 06, 2011

40. Calígula e seu cavalo

Preconceitos, por sua própria natureza, não são exatamente muito racionais. Por exemplo, a minha posição a respeito dos idiomas é descritivista: a linguagem é uma convenção entre seus usuários e, portanto, a maioria deles não pode estar errada. Se os dicionários dizem drible e a maior parte dos brasileiros diz dible, quem está com a razão são as pessoas nas ruas, e azar dos dicionários e do professor Pasquale. Mesmo assim, fico com vontade de subir pelas paredes quando ouço algumas dessas variações, como alguém dizendo enterter ao invés de entreter, císnei no lugar de cisne ou xalxicha no lugar de salsicha. Não faz muito sentido, mas é assim que as coisas são.

Em relação à história, as pessoas também falam o que querem o tempo todo, com a diferença de que ela envolve questões de veracidade, e não (só) de convenção. A maior parte do que se ouve são chavões que, no melhor dos casos, são apenas em parte verdade, e no mais das vezes são pelo menos 99% de bobagem. Coisas que você já deve ter ouvido também, do tipo "o Brasil não dá certo porque foi povoado por criminosos", "os chineses não têm tradição política porque ficaram milênios seguindo os imperadores", "o Ocidente é mais avançado graças à sua democracia", e por aí vai. Infelizmente, separar as meias verdades e os mitos nesses casos exige uma análise mais ou menos complexa.

O que realmente me incomoda, voltando à questão dos preconceitos, são aquelas bobagens que qualquer um poderia se dar ao trabalho de conferir se são verdade ou não. Aquelas que não envolvem grandes questões macrohistóricas, mas as pequenas anedotas que as pessoas soltam para ilustrar algum argumento.

Uma delas, que tive o desprazer de ouvir recentemente pela enésima vez, é do tipo que certamente todos já ouviram: "Incitatus, o cavalo do imperador romano Calígula, foi cônsul". É uma afirmação tão comum e corriqueira que não parece haver motivo para duvidar: afinal, Calígula era louco, e loucos não fazem coisas como dar altos cargos para seus cavalos?

Pena que é tão simples testar a veracidade do consulado de Incitatus. Vamos começar com os fatos básicos: Caio foi imperador romano de 37 a 41, e apelidado de Calígula porque, quando pequeno, seu pai, o importante general Germânico, fazia Caio acompanhá-lo pelos acampamentos militares vestido de soldadinho, e o uniforme da época incluía as caligas, sandálias usadas pelos soldados. Daí Caio ser até hoje mais conhecido como "sandalinha" - seria mais ou menos como termos um presidente filho de militares apelidado de Coturninho.
Seu curto reinado está terrivelmente mal documentado hoje em dia - temos pouquíssimos relatos escritos por pessoas que conheceram o imperador, sendo o mais importante deles a Embaixada a Caio, escrito por Fílon de Alexandria, judeu que liderou uma delegação ao imperador para reclamar dos maus tratos que a população judia estava sofrendo na metrópole egípcia.
Tirando o texto da Embaixada, sobram as obras dos historiadores. Os autores mais próximos desse período foram Suetônio e Tácito, que escreveram no começo do século 2, ou seja, quando todos os envolvidos já estavam mortos há tempo. Para complicar, não temos o relato de Tácito sobre Calígula: foi encontrada apenas uma cópia medieval das obras de Tácito, bastante incompleta, e uma das partes que faltam é exatamente a que mostrava Caio no poder. Sobra Suetônio. Ele não era exatamente um historiador, mas algo como um biógrafo sensacionalista, interessado nas anedotas bizarras, de preferência as sexuais - é culpa de Suetônio, e da falta quase completa de alternativa a ele, acharmos que tantos dos primeiros imperadores romanos eram depravados. O quanto ele disse de verdadeiro, o quanto inventou e o quanto escreveu boatos como se fossem pura verdade é um problema grande e difícil de resolver.
De volta a Calígula: as fontes que temos - Fílon, Suetônio, uma que outra passagem de Tácito e as obras de historiadores bem posteriores - são unânimes em afirmar que ele foi um péssimo imperador. Do tipo que declarou ser um deus, matava seus oponentes sem muita piedade, entre outras coisas mais. Talvez tenha tido as irmãs como amantes, se você acha que Suetônio merece confiança quanto a isso. Enfim, dois mil anos depois, é difícil saber ao certo se ele foi realmente louco ou se isso era apenas a explicação dada para justificar suas arbitrariedades - Calígula pode ter sido "apenas" um deslumbrado pelo poder, como os Saddams e Kaddafis dos nossos tempos.

Mas uma coisa que podemos dizer que ele não fez foi nomear seu cavalo cônsul. Eis o que Suetônio disse a respeito (Vida de Calígula, 55, 3): "Na véspera dos jogos circenses, ele enviava seus soldados para ordenarem a vizinhança a fazer silêncio a fim de que o cavalo Incitatus não fosse incomodado. Além de um estábulo de mármore, uma manjedoura de marfim, cobertores de púrpura e um colar de pedras preciosas, ele ainda deu ao cavalo uma casa, um conjunto de escravos e mobília, para melhor recepção dos hóspedes convidados em seu nome. E também se diz que ele planejava torná-lo cônsul".

"Se diz" e "planejava" = o cavalo não foi cônsul. É possível discutir se Incitatus realmente recebeu seu estábulo de mármore e tudo o mais, e, se recebeu, qual a motivação de Calígula - não é tão difícil imaginar um ditador convidando as pessoas a falar com seu cavalo e outras humilhações do tipo, sem que o ditador seja necessariamente insano. Talvez ele tenha dito aos políticos romanos "aposto que até meu cavalo faz o serviço de vocês", e daí começaram os boatos.

Mas vamos dizer isso mais uma vez, para garantir: Incitatus nunca foi cônsul...

agosto 31, 2011

39. Congresso Internacional de História Regional

Daqui a um mês - 28 a 30 de setembro - a UPF realizará o I Congresso Internacional de História Regional. Estarei lá, apresentando um artigo sobre um desses temas que descobri com a dissertação mas ficaram de fora da investigação principal. Eis o resumo:

Carisma comprometido: Desventuras de um curandeiro e sua clientela (Fontoura Xavier, 1966)
O artigo 284 do Código Penal brasileiro, que versa sobre o curandeirismo, costuma ser tratado pela historiografia como uma forma de criminalizar práticas religiosas consideradas ilegítimas pelas autoridades, bem como de fortalecer o monopólio das artes da cura por parte dos médicos. No entanto, o curandeiro corria ainda um terceiro risco ao praticar seu ofício: perder o apoio da comunidade à qual atendia. Este estudo busca analisar essa terceira possibilidade através de um estudo de caso, empregando como fonte o processo-crime em que foi réu Lúcio Rodrigues, curandeiro atuante no interior do município de Fontoura Xavier em meados da década de 1960. Rodrigues enfrentou problemas legais não por perseguição das autoridades, mas ao comprometer sua reputação junto à comunidade, tendo sido acusado de seduzir a filha de seu anfitrião, alegando que, como “servo de Deus” que era, ele precisava de uma profetisa.


Quem puder, apareça - o seminário promete ser interessante. Quem não puder terá a chance de ler os anais do evento no site.

agosto 26, 2011

38. Mudanças no quadro religioso - um adendo

Um texto para ajudar a pensar essas transformações religiosas brasileiras é este artigo de Marcelo Camurça da UFJF: http://www.revistasusp.sibi.usp.br/pdf/revusp/n81/15.pdf

Essencialmente, até há poucas décadas a religiosidade brasileira foi marcada pela pluralidade religiosa e unidade institucional: quase todos se diziam católicos mas não excluíam o sincretismo nas crenças e a prática ocasional de outras religiões, como o kardecismo e as religiões afro. O que se vê recentemente é o surgimento de uma pluralidade de instituições - mais igrejas reivindicando a afiliação e identidade dos fiéis e competindo entre si.

Como resultado da competição, praticamente todos os grupos anteriormente estabelecidos têm se modificado (p. 179):

Dessa forma, alterações substantivas ocorrem no campo religioso, como por exemplo: no campo evangélico, o fato de as igrejas evangélicas clássicas modificarem-se litúrgica e doutrinariamente na direção (neo)pentecostal, para ficarem mais competitivas em relação aos neopentecostalismos; no campo católico, o papel da Renovação Carismática Católica buscando dar à Igreja mais visibilidade na esfera pública, através de técnicas emocionais, lúdicas e midiáticas, muito próximas dos pentecostais, adestrando a instituição a competir no mercado religioso, na conquista e preservação dos seus fiéis (Oro, 1996; Carranza, 1998; Machado, 1996; Prandi, 1997); no campo afro, o “abandono da ideia de ‘religião étnica’ e transformação do candomblé em religião universal, dessincretização (Prandi, 1991; Silva, 1995), tentativa de sua ‘purificação’ e ‘restauração’ na sua pureza, liberado de qualquer contaminação ‘católica’” (Sanchis, 1997, p. 108).

Por outro lado, o pentecostalismo, o recém-chegado que foi o principal responsável pelo estabelecimento da competição, também não permaneceu o mesmo, sofrendo a influência do tradicional sincretismo local (p. 180):

A capacidade mimética das igrejas neo-pentecostais, como a Igreja Universal do Reino de Deus, de conciliar um discurso exclusivista e intolerante em relação às outras religiões (catolicismo, espiritismo e afro-brasileiras) e ao mesmo tempo incorporar dimensões fundamentais dessas religiões à sua estrutura tem levado ao assombro os próprios evangélicos e pentecostais ditos históricos, como expressa esse manifesto da Associação Evangélica Brasileira (AEVB), ao discordar das “práticas
da Igreja Universal do Reino de Deus que apresentam elementos radicalmente contrários à fé evangélica e à melhor herança bíblica da Igreja Protestante e Pentecostal”. Em seguida listam essas práticas – que segundo eles destoam da orientação evangélica/pentecostal – e que são, na verdade, provenientes e características ora do catolicismo, ora do kardecismo, ora dos cultos afro-brasileiros:


“– A compra de indulgências (prática do catolicismo medieval), ou seja, a compra de sucesso através das intermináveis correntes da prosperidade que demandam do fiel que doe dinheiro em cada culto sob pena de não alcançar a bênção.
 

– A aceitação das nomenclaturas e identidades dos espíritos dos cultos afro-ameríndios (exemplo: pretos velhos, exus, pombas giras, etc.) como sendo entidades por aqueles cultos afirmadas. Os evangélicos creem na existência de tais espíritos, mas não reconhecem sua designação como sendo as dadas pelos cultos afro-ameríndios, ou seja, espíritos humanos desencarnados ou deuses primitivos, mas discerne-os, antes de tudo, como espíritos malignos ou demônios, conforme o Novo Testamento.
 

– O uso de elementos mágicos dos cultos e superstições populares do Brasil, entre eles, o sal grosso (para afastar maus espíritos), a rosa ungida (usada nos despachos e oferendas a Iemanjá), a água fluidificada (usada pelos credos espiritualistas a fim de trazer a imanência espiritual para o corpo humano), fitas e pulseiras especiais (semelhantes na sua designação às fitas do chamado Senhor do Bonfim), o ramo de arruda (usado para afastar coisas más) e uma quantidade enorme de apetrechos aos quais empresta supostos poderes espirituais que podem ser passados para seus usuários” (Vinde, 1996).

De resto, leia o artigo. Pensar faz bem, e esses são assuntos que afetam nosso dia-a-dia.

37. Mudanças no quadro religioso brasileiro

A essa altura, a mídia já espalhou aos quatro ventos o estudo da FGV sobre a religiosidade brasileira. Infelizmente, o foco deu-se sobre apenas um punhado de dados, inclusive o mais midiático, a queda dos católicos para 68,43% da população.

O texto divulgado pela FGV contém várias outras informações que merecem ser consideradas (e também a afirmação meio estranha de que os PIIGS, incluindo a Grécia ortodoxa, são essencialmente católicos). Eis as que me chamaram a atenção:
- o declínio do catolicismo ocorreu em todas as faixas etárias, não apenas entre os mais jovens;
- ele é um fenômeno acelerado, não gradual, tendo ocorrido principalmente nos últimos 30 anos: ainda em 1980, os católicos eram 88,96%;
- em dois estados os católicos já não são maioria: Rio de Janeiro e Roraima;
- o maior crescimento ocorreu entre os evangélicos tradicionais, de 5,35% para 7,47%;
- os homens são os menos religiosos, mas também os mais católicos; mulheres formam a maior parte dos evangélicos e espíritas;
- evangélicos tradicionais e espíritas concentram-se nas classes altas. Evangélicos pentecostais, nas baixas. Católicos e não religiosos são mais comuns nos dois extremos.

O que parece evidente é que a religião está num momento de mudanças rápidas por aqui. As duas grandes perguntas sem resposta são: a) quando e em que ponto vai parar a fuga dos católicos? O catolicismo continuará sendo majoritário por muito tempo ou se tornará apenas a crença mais comum? b) Quais serão as mudanças sociais e culturais decorrentes desse cenário mais plural? Mais tolerância ou igrejas agressivamente caçando fiéis e atacando suas rivais?
A resposta à primeira pergunta depende, em grande parte, de quais atitudes o clero católico pretende tomar para recuperar o rebanho perdido - não é uma que outra vinda do papa que vai fazer a diferença. A segunda depende principalmente dos pentecostais, que no momento formam a principal nota dissonante num contexto mais ou menos tolerante (ênfase no mais ou menos, por favor). Por mim, apenas gostaria que eles abandonassem a sua peculiar obsessão à la americana com a verdade literal da Bíblia e o obscurantismo científico que daí segue. Atualmente, existe um motivo para que o pentecostalismo seja inversamente proporcional ao grau de instrução das pessoas...

agosto 12, 2011

36. Fuga de Sobibor

Está para ser lançado um livro traduzido pelo colega Felipe Abal, Fuga de Sobibor. Fica a sugestão para os entusiastas pela Segunda Guerra, e aqui vai o anúncio do lançamento:

Editora 8INVERSO lança no Brasil obra inédita sobre a Segunda Guerra Mundial
“Fuga de Sobibor”, de Richard Rashke, é resultado de extensa pesquisa histórica sobre evento da Grande Guerra ainda pouco conhecido pelos brasileiros
A Editora 8INVERSO lança “Fuga de Sobibor”, do norte-americano Richard Rashke, em dois eventos, no dia 26 de agosto, em Passo Fundo, Rio Grande do Sul. O primeiro, às 15h, no Centro de Lazer e Cultura Popular, no Campus I da Universidade de Passo Fundo, será uma sessão de autógrafos com a presença do tradutor da obra, Felipe Cittolin Abal, e da Editora 8INVERSO, em programação paralela à 14ª Jornada Literária de Passo Fundo. Também no dia 26, das 18h às 20h, Abal autografa na Ramires – Revisteria e Livraria, Avenida Brasil Oeste, 199, Centro de Passo Fundo.
Originalmente lançada nos Estados Unidos em 1982, a obra é o resultado de extensa pesquisa histórica e entrevistas com judeus ex-presidiários do campo de extermínio de Sobibor, na Polônia. O lugar entrou para a história por ser o cenário do mais bem-sucedido levante de prisioneiros num campo de extermínio nazista, em 1943.
O tradutor Felipe Cittolin Abal, professor de Direito na Universidade de Passo Fundo, propôs à Editora 8INVERSO a edição da obra, depois de realizar, por iniciativa própria, a tradução do original norte-americano, “Escape from Sobibor”. A história foi adaptada para um telefilme, em 1987, e o livro foi reeditado para o mercado americano em 1995.
“Fuga de Sobibor” apresenta ao grande público brasileiro relatos, fotos e documentos que ajudam a contar uma história emocionante e envolvente sobre liberdade, opressão e sobrevivência.
A entrada é gratuita; o livro estará à venda em ambos locais por R$ 56,00.
 
Serviço!
O QUE: Evento de lançamento e sessão de autógrafos do livro “Fuga de Sobibor”, de Richard Rashke, traduzido por Felipe Cittolin Abal.
QUANDO: 26 de agosto.
ONDE: No Centro de Lazer e Cultura Popular – Campus I da UPF (BR 285, bairro São José, em Passo Fundo, RS), às 15h. No mesmo dia, na Ramires – Revisteria e Livraria, Avenida Brasil Oeste, 199, Centro, em Passo Fundo, RS, das 18h às 20h.
QUANTO: Entrada gratuita.
 
Saiba mais!
Fuga de Sobibor, de Richard Rashke: primeira edição brasileira de importante resgate histórico sobre levante de prisioneiros judeus contra o campo de extermínio de Sobibor, na Polônia.
Tradução: Felipe Cittolin Abal
ISBN: 978-85-62696-12-1
Páginas: 384 pp.
Tamanho: 16cm X 23cm.
Preço de capa: R$ 56,00
 
Saiba mais!
Sobre a Editora 8INVERSO
Criada em 2009, em Porto Alegre, a 8INVERSO se destaca no mercado literário com edições elogiadas e títulos diferenciados. Seu primeiro lançamento foi a tradução de “Dostoievski – Correspondências (1838-1880)” que apresenta seleção de cartas do renomado escritor russo. Naquele ano, lançou também a biografia em quadrinhos do músico Johnny Cash, escrita pelo alemão Reinhard Kleist.
Em 2010, lançou “Histórias para quem gosta de contar histórias”, seleção de contos do Mestre em Filosofia e ensaísta Cássio Pantaleoni, e “Autobiografia de um ex-negro”, primeira tradução em português de um dos mais importantes títulos da literatura afro-americana, escrito por James Weldon Johnson. Em seguida, lançou outra biografia em quadrinhos: “Elvis”, sobre o Rei do Rock, também de Reinhard Kleist.
Em novembro de 2010, lançou seu primeiro livro infantil, “Por que o Elvis não latiu?”, com texto de Robertson Frizero e ilustração de Tayla Nicoletti. Em março de 2011, lançou sua terceira graphic novel biográfica de Reinhard Kleist: “Castro”, sobre o líder cubano Fidel Castro, e “Os regadores de livros” – segundo título infantil do catálogo, escrito por Juliana Dalla e ilustrado por Valéria Paes.
A 8INVERSO é a primeira editora gaúcha a comprar direitos autorais da Alemanha em seu primeiro ano de vida e a primeira a traduzir para o português os livros “Dostoievski – Correspondências (1838-1880)”, “Autobiografia de um ex-negro” e “Fuga de Sobibor”
www.8inverso.com.br
twitter.com/8INVERSO

agosto 06, 2011

35. Forastieri e quadrinhos

André Forastieri é um desses sujeitos que tem ideias interessantes e nenhum medo de espalhá-las em seu blog - em seu último post, ele sugeriu nada menos que a abolição das Forças Armadas brasileiras, seguindo o exemplo da Costa Rica. Inviável? Talvez. Um bom experimento mental, ainda mais quando ele nos lembra que deu certo na Costa Rica, que fica em uma das regiões mais bagunçadas do planeta? Sem dúvida. E as pessoas que mais merecem ser ouvidas não são aquelas com quem concordamos, mas aquelas que nos deixam com uma pulga atrás da orelha e nos fazem pensar um pouco.

Além de um blogueiro curioso, ele é um entendido em quadrinhos. Como sou leitor de quadrinhos desde que me conheço por gente e recentemente comecei a me interessar academicamente pelo assunto, tive a ideia de fazer um post para combater um pouco do preconceito que existe a respeito. Dizer que quadrinhos são um meio de expressão artística como qualquer outro, não são necessariamente para crianças e que, se a maior parte é dolorosamente ruim - como qualquer forma de arte - alguns são de grande qualidade literária.

Ia fazer isso, mas não fiz, porque Forastieri fez a mesma coisa antes: aqui, um texto que diz tudo isso e mais um pouco; aqui, comentários sobre uma dessas obras que merecem ser lidas: V de Vingança. Se você ainda não conhece, ou se só viu o filme, faça um favor a si mesmo e pare de se privar de coisas boas...

julho 29, 2011

34. Indianos e brasileiros - uma pequena nota

Via de regra, o que mais me interessa no estudo do passado são as pequenas diferenças. Piadas que hoje parecem estranhas, gestos difíceis de compreender, coisas hoje impensáveis sendo ditas com a maior naturalidade - por exemplo, não faz tanto tempo assim que todo o mundo tinha ministérios da Guerra, não da Defesa. Talvez um eufemismo, talvez um legado da destruição das duas guerras mundiais - em todo caso, uma pequena mudança que revela alguma coisa. Enfim, pequenas chaves para tentar entender o que é experimentar a vida e compreender o mundo de maneiras diferentes da nossa.

(O que não é nenhuma inovação - esse princípio de pesquisa foi expresso já faz algum tempo por Robert Darnton, em um livro fascinante chamado O grande massacre de gatos. Algumas pessoas, discípulos de Fernand Braudel, poderiam dizer que o que realmente importa são as continuidades, aquilo que permanece constante ao longo de muito tempo como o leito do mar, e não os acontecimentos, que não seriam mais que a espuma das ondas. Mas escolhi meu caminho, sem ter pretensões de conhecer o caminho.)

Mas, às vezes, as semelhanças podem ser igualmente surpreendentes. Uma delas ocorre entre o Brasil dos últimos anos décadas séculos e uma passagem curiosa do Arthashastra (aproximadamente, Tratado de política), uma obra indiana do final do século -4, atribuída a Kautilya, conselheiro de Chandragupta Maurya, conquistador do norte da Índia. Em geral, pensamos na Índia como uma terra de espiritualidade exótica, mas o Arthashastra mostra um realismo prático muito mais maquiavélico que Maquiavel. Nesta passagem, Kautilya avisa o governante sobre não confiar em seus funcionários:

Todos os empreendimentos dependem das finanças. Daí que toda a atenção deve ser dispensada ao tesouro... Há cerca de quarenta maneiras de desfalque [segue-se uma descrição detalhada destas]. Assim como é impossível não sentir o gosto do mel ou do veneno quando estão na ponta da língua, assim também é impossível que um empregado do governo não usufrua um pouco dos rendimentos reais. Assim como não é possível saber se um peixe que se move na água está dela bebendo ou não, assim também não é possível descobrir se os empregados que trabalham no governo furtam o dinheiro.
É possível observar os movimentos dos pássaros que voam no céu, mas não é possível apurar os movimentos dos empregados do governo com intenções ocultas.
(extraído de Heinrich Zimmer, Filosofias da Índia, p. 100)

Se Kautilya visse o Brasil de hoje, suspeito que só faria uma alteração no texto: aumentar as maneiras de desfalque...

junho 13, 2011

33. Até da Guerra do Paraguai?

Minha definição preferida de censor: alguém que acha que sabe mais do que você deveria.

E quando nossos ex-presidentes se unem a favor do sigilo eterno de documentos públicos, alguém acredita que eles estão bem intencionados? Alguém acha boa ideia o governo poder esconder seus atos para sempre, especialmente um governo que cede a pressões tão descaradamente interesseiras?


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 Sarney defende sigilo eterno de documentos para não ‘abrir feridas’

 Eduardo Bresciani, do estadão.com.br
O presidente do Senado, José Sarney (PMDB-AP), defendeu nesta segunda-feira a manutenção do sigilo eterno sobre documentos considerados ultrassecretos. Em entrevista ao Estado, a nova ministra das Relações Institucionais, Ideli Salvatti, afirmou que o governo vai defender o sigilo eterno para atender ao desejo de ex-presidentes, como Sarney e Fernando Collor (PTB-AL), hoje senadores e integrantes da base aliada.
Na visão de Sarney, a abertura de documentos históricos pode “abrir feridas” do passado. “Os documentos históricos que fazem parte da nossa história diplomática, do Brasil, e que tenham articulações, como o Rio Branco teve que fazer muitas vezes, não podemos revelar esses documentos, senão vamos abrir feridas”.
Ele afirmou que é preciso manter o segredo para “preservar” o Brasil.
“Eu tenho muita preocupação que hoje nós tenhamos a oportunidade de abrir questões históricas que devem ser encerradas para frente no interesse nacional. Nós devemos olhar o Brasil. Ultimamente, todos nós nos acostumamos a bater um pouco no nosso país. Vamos amar o nosso país e preservar o que ele tem”.
Sarney nega, porém, que sua defesa do sigilo eterno tenha como objetivo ocultar ações suas quando presidiu o país. Ele afirmou que é preciso divulgar tudo que for relativo ao “passado recente”. “Sou um homem que nada tenho a esconder”.
Segundo a ministra de Relações Institucionais, o governo vai apoiar alterações no texto que tramita no Senado sobre a lei de acesso a informações. A proposta aprovada na Câmara prevê um limite de 50 anos para a manutenção do sigilo de documentos ultrassecretos. Ideli afirma que a intenção do governo é retornar ao projeto original enviado ainda pelo presidente Lula, no qual não havia limite para a renovação do prazo de sigilo dos documentos.


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Dilma cede a pressões e agora quer manter sigilo eterno de documentos

Ideli Salvatti disse ao ‘Estado’ que governo vai atender a reivindicações dos senadores e ex-presidentes José Sarney e Fernando Collor para facilitar tramitação do projeto no Senado

A presidente Dilma Rousseff vai patrocinar no Senado uma mudança no projeto que trata do acesso a informações públicas para manter a possibilidade de sigilo eterno para documentos oficiais. Segundo a nova ministra de Relações Institucionais, Ideli Salvatti, o governo vai se posicionar assim para atender a uma reivindicação dos ex-presidentes Fernando Collor (PTB-AL) e José Sarney (PMDB-AP), integrantes da base governista.
A discussão sobre documentos sigilosos tem como base um projeto enviado ao Congresso pelo então presidente Luiz Inácio Lula da Silva em 2009. No ano passado, a Câmara aprovou o texto com uma mudança substancial: limitava a uma única vez a possibilidade de renovação do prazo de sigilo. Com isso, documentos classificados como ultrassecretos seriam divulgados em no máximo 50 anos. É essa limitação que se pretende derrubar agora.
"O que gera reações é uma emenda que foi incluída pela Câmara. Vamos recompor o projeto original porque nele não há nenhum ruído, nenhuma reação negativa", disse Ideli ao Estado.
Acatar a mudança defendida pelos ex-presidentes é a forma encontrada para resolver o tema, debatido com frequência no Senado desde o início do ano. O governo cogitou fazer um evento para marcar o fim do sigilo eterno - Dilma sancionaria a lei em 3 de maio, Dia Mundial da Liberdade de Imprensa.

Temerário

O desfecho não foi assim por resistência de Collor. Presidente da Comissão de Relações Exteriores, ele decidiu relatar a proposta e não deu encaminhamento ao tema. No dia 3 de maio, o ex-presidente foi ao plenário e mandou seu recado ao Planalto ao classificar de "temerário" aprovar o texto como estava. "Seria a inversão do processo de construção democrática."
Desde então, a votação vem sendo adiada repetidas vezes. Na semana passada, Dilma almoçou com a bancada do PTB no Senado. Na ocasião, Collor teria manifestado sua preocupação sobre o tema e exposto argumentos contrários ao fim do sigilo.
O senador Walter Pinheiro (PT-BA), que relatou o projeto na Comissão de Ciência, Tecnologia e Comunicação e é contra o sigilo eterno, vai procurar Ideli nesta semana para tratar do tema. "Estamos propondo acesso a informação de fatos históricos. Você vai abrir comissão da verdade para discutir o período da ditadura e não pode ter acesso às verdades históricas no Brasil?"
Atualmente, documentos classificados como ultrassecretos têm sigilo de 30 anos, mas esse prazo pode ser renovado por tempo indeterminado, o que ocorreu nos governos Lula e Fernando Henrique Cardoso.
Documentos da Guerra do Paraguai, terminada há 141 anos, continuam secretos até hoje. Se a nova lei for aprovada da forma como deseja agora Dilma, a única diferença é que a renovação do sigilo se daria a cada 25 anos.

junho 12, 2011

32. Links novos

Na coluna da esquerda, links para dois blogs interessantes. O diferencial em relação aos anteriores é que estes não estão em português - para sair do atraso cultural, é mais prático ver o que está acontecendo em regiões mais desenvolvidas e tomar o avanço deles como base para o nosso próprio do que partir do zero e tentar reinventar a roda. Se bem que nem tentamos reinventar a roda nem vemos como ela poderia ser proveitosa, atrasados que estamos!

Primeiro, o http://www.languagehat.com/, em inglês, trata de um assunto que volta e meia é mencionado aqui: a questão dos idiomas. O autor tem uma paixão pelo russo e literatura russa, mas o blog não se restringe a isso. Transformações linguísticas, política e idiomas, migrações, contatos culturais, de tudo um pouco.

Segundo, o http://blogs.histoireglobale.com/, que descobri recentemente (a blogosfera francófona não é um ambiente que frequento muito), mas traz textos bons sobre história global - não simplesmente trazendo a história de regiões diversas, mas mostrando as conexões entre elas.

Bom proveito!

junho 11, 2011

31. Kung Fu Shaolin - Tudo que você sempre quis saber a respeito e tinha medo de perguntar

Não é curioso que um blog chamado Gabinete de leitura tenha poucas sugestões de leitura? Hora de corrigir isso!
A dica de hoje é um artigo chamado Budismo, marcialidade e legitimação da violência: O Kung Fu e as disputas historiográficas sobre o mosteiro de Shaolin. Para quem está na dúvida (o texto tem 18 páginas), aqui vai o resumo:

O ensaio reúne as contribuições da historiografia recente para a compreensão das
relações entre Budismo, marcialidade e ascese na tradição marcial do Mosteiro
de Shaolin, tradicional centro de cultivo de artes marciais e um dos berços
da espiritualidade Chan, localizado no Norte da China. Para responder às interrogações
centrais sobre a relação entre a marcialidade, a violência e a cultura
chinesa, recorreu-se à literatura de época, à filmografia que abordou o tema e a
entrevistas com mestres e praticantes de kung fu.


O artigo vale a pena por tratar de alguns temas bastante interessantes: kung fu (um termo genérico ocidental para as artes marciais chinesas), Shaolin (um mosteiro no interior da China cujos monges desenvolveram uma tradição marcial) e como algumas correntes do budismo, uma religião teoricamente pacifista, incorporaram esse elemento de violência. O processo é um pouco parecido com o que aconteceu no cristianismo: racionalizaram a contradição dizendo que para defender a fé a violência era permitida.

Dê uma chance ao texto. André Bueno (o blog dele, Orientalismo, pode ser acessado do link à esquerda) escreveu uma vez que daria para fazer um congresso de sinólogos brasileiros dentro de uma kombi. Acho que ele não estava brincando, e que na kombi ainda caberiam a plateia e o motorista. Para começar a mudar isso, o mínimo que o resto de nós pode fazer é ler o que esse pessoal produz e ver que a China tem uma história que merece mais atenção do que vem recebendo aqui na periferia cultural.

junho 03, 2011

30. Jefferson e o espírito de resistência

Olhando por acaso as cartas de Thomas Jefferson*, encontrei uma passagem que tem um pouco em comum com o post anterior.

Trata-se do trecho de uma carta escrita em fevereiro de 1787 para Abigail Adams (esposa de John Adams, primeiro vice-presidente e segundo presidente dos EUA), em que Jefferson faz um comentário sobre o fim da revolta de Shays, um movimento de pequenos fazendeiros de Massachusetts descontentes com a situação da jovem república pós-independência**:

Espero que eles tenham sido perdoados. O espírito de resistência ao governo é tão valioso em certas ocasiões que espero que seja sempre mantido vivo. Ele será muitas vezes exercido erroneamente, mas é melhor isso do que ele não ser exercido. Gosto de uma pequena revolta de vez em quando. É como uma tempestade na atmosfera.

O texto original pode ser encontrado neste link. Uma tempestade na atmosfera...


* Thomas Jefferson: advogado/dono de terras/político da Virgínia, principal autor da Declaração de Independência dos Estados Unidos, terceiro presidente americano, de 1800 a 1807.
** Apesar de raramente se ouvir falar dessa revolta por aqui, e de sua pequena escala, ela gerou um clamor em favor de um governo central mais forte que pudesse impedir esse tipo de movimento. A Constituição americana, no mesmo ano, criou justamente um governo central assim. A revolta de Shays não foi a única causa do fortalecimento do governo federal, mas foi uma causa. O nome da revolta vem de seu líder Daniel Shays, veterano da guerra de independência.

maio 27, 2011

29. Direitos, democracia, desesperança...

Acontecem coisas tão infelizes que dão vontade de suspirar e entregar os pontos. Abandonar o posto de pracinha na luta pelo pensamento crítico e deixar os obscurantistas triunfarem.

Caso em questão: um desembargador em São Paulo proibiu na última hora - para evitar qualquer contestação judicial inconveniente - a Marcha da Maconha, manifestação pacífica pela liberação do uso dessa substância. Walter Hupsel, colunista do Yahoo, escreveu um artigo em que, sem entrar no mérito ou não da maconha, condenou a atitude pouco democrática do desembargador, que restringiu arbitrariamente o direito de expressão de diversos cidadãos, e a atitude também nada democrática da polícia militar paulistana, que cumpriu seu papel valentemente caceteando manifestantes pacíficos.

Até aí, nada fora do esperado - a truculência de agentes estatais acostumados a tratar o povo na base do autoritarismo, do canetaço, da violência, e algumas pessoas protestando contra isso. O de praxe. O que causou aquela vontade de desistir de tudo foi a reação dos leitores ao artigo de Hupsel. A grande, imensa, ululante maioria diz mais ou menos o seguinte: "eu sou contra a maconha, então aquele pessoal não tinha o direito de se manifestar".

Talvez o leitor ache que estou cometendo um exagero retórico. Para provar o contrário, aqui vão alguns dos comentários daquele site:

""não acredito que li essa porcaria…
ta se lembrando da democracia e se esquecendo do que a droga faz em nosso país."

"Só viciado em maconha para criticar a postura do Estado neste caso. Parabéns ao Judiciário e a PM."""

"Meu filho andou fumando esta merda e só perdia tempo na vida, graças a DEUS hoje esta numa igreja evangélica e tem uma nova visão da vida, esta prosperando sua feição mudou pra melhor e sua alto estima é positiva, quer saber tenho pena deste fdp de maconheiro, e esse comentarista Walter a si atribui frescura e realmente vc é fresco basta notar seus comentarios simpaticos aos gays, aliás parece que uma coisa puxa a outra gay, maconha, trafico, protituição. PAU NELES POLICE"


"Maconheiros são os primeiros financiadores da violência!!! Tem que descer o sarrafo nestes vagabundos!!!"

 Os interessados podem encontrar ali mais pérolas imortais da argumentação racional. Minhas conclusões do episódio todo:
1 - boa parte dos brasileiros não sabe ler. Até sabem juntar as sílabas, mas não conseguem entender o que leram. Não entenderam que Hupsel em nenhum momento defendeu a liberação da maconha, apenas defendeu a liberdade de expressão.
2 - as mesmas pessoas não acreditam - ou não compreendem - na democracia e nos direitos individuais. Não veem a importância da livre expressão do pensamento, ESPECIALMENTE quando se trata de opiniões impopulares - afinal, quando é para falar o que todo mundo pensa, é evidente que ninguém se opõe. Ou podemos dizer o que pensamos ou somos um rebanho. Se não existe a possibilidade de fazer movimentos propondo a mudança das leis, que sentido há em falar de democracia?
(Alguns dos críticos de Hupsel disseram que existem causas mais importantes a serem defendidas do que a maconha. Concordo. A livre expressão é uma delas. E, em um país livre, quem é que pode decidir quais causas os outros consideram importantes, ou quais problemas são dignos de solução? Cada um por si, talvez?)
3 - ligado ao ponto 2, essas pessoas não acreditam em limitação aos poderes estatais. Um magistrado restringe, por seu único e exclusivo arbítrio, a liberdade de expressão das pessoas? Ah, ordem judicial é para ser cumprida, não discutida. Policiais bateram em pessoas desarmadas que não estavam fazendo mal a ninguém? Ah, eles têm é que baixar o cacete nos vagabundos. A ideia de que o governo possa fazer burradas homéricas, ou de que temos direitos com os quais o governo não pode mexer (são direitos, não prêmios por boa conduta que podem ser tirados a qualquer minuto) parece impensável para eles.

É nessas horas que acho que, apesar de todas as críticas à política externa dos Estados Unidos, os americanos têm algumas coisas a nos ensinar. O conceito de direitos individuais, que o indivíduo possui simplesmente por existir, e ai de quem tentar tirá-los dele, por qualquer motivo que for, está firmemente arraigada ali, e não só nos setores mais caipiras da população. Um exemplo dessa diferença de atitude em um e outro país é a questão das armas. No Brasil, a polêmica sobre o plebiscito do desarmamento, há alguns anos atrás, tratava basicamente da questão da segurança. Desarmar a população iria ou não tornar as ruas mais seguras? Na maior parte do tempo, nem se tocou na legitimidade do Estado para realizar esse desarmamento. Nos Estados Unidos, por outro lado, os defensores das armas usam um argumento muito aceito por lá, mas que aqui soaria bizarro: "se desarmarem o povo, como vamos derrubar uma tirania quando ela surgir?".

Se o descaso brasileiro pelo diálogo com os diferentes, pela democracia e pelos direitos individuais é mais uma parte do nosso legado colonial português, ou mais uma herança do governo militar? Provavelmente um pouco de tudo isso. Nunca fomos muito democráticos, mesmo nos períodos em que podemos votar de vez em quando.

Talvez eu esteja equivocado e os críticos de Hupsel sejam apenas uma pequena minoria. Talvez a maior parte da população seja a favor do diálogo com palavras, não com canetaços e porretadas.
Mas, a essa altura, só acredito vendo.

maio 25, 2011

28. Prata americana = inflação na Europa

Nenhuma grande novidade na reportagem abaixo, referente a um estudo que basicamente comprova o que já se sabia. Em português claro: para o espanhol comum dos séculos 16 e 17, aquele que nem usava uma coroa na cabeça nem era empreendedor o bastante para se aventurar pelas conquistas (no século 16) ou para recomeçar a vida nas cidades coloniais, a consequência prática da conquista da América foi uma grande inflação. A mesma coisa valia para o europeu comum que não tivesse participação em algum dos bancos credores da coroa espanhola.

(Havia o efeito positivo de uma dieta mais variada com a adoção da batata, tomate, milho, etc, mas é outra questão saber se o nosso europeu comum teria achado que uma coisa compensava a outra. E, claro, o cálculo fica ainda mais complicado quando consideramos produtos americanos nem tão bons assim, como o tabaco!)
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Estudo prova efeito inflacionário da prata americana nos séculos XVI e XVIII

Os pesquisadores empregaram uma técnica chamada espectrometria de massas para identificar a origem da prata que chegou ao mercado europeu através dos portos espanhóis nesse período

WASHINGTON - Pesquisadores comprovaram, analisando as ligas metálicas das moedas espanholas dos séculos XVI e XVIII, o efeito inflacionário causado na Europa pela chegada em massa de prata procedente das Américas.

"Entre o século XVI e o século XVIII, aproximadamente 300 toneladas anuais de prata saíram de minas nas colônias americanas da Espanha", afirma o artigo publicado pela revista Proceedings of the National Academy of Sciences (PNAS).

Os autores da pesquisa, liderados por Anne Marie Desaulty, da Escola Normal Superior de Lyon, acrescentaram que "as economias locais da América não puderam absorver tal quantidade de prata e, portanto, o metal precioso marchou rumo ao mercado europeu através dos portos espanhóis, principalmente Sevilha", e também em direção ao Extremo Oriente pelas Filipinas.

Os pesquisadores empregaram uma técnica chamada espectrometria de massas para identificar a origem da prata, do cobre e dos isótopos de chumbo em 91 moedas antigas do Mediterrâneo oriental, do Império Romano, da Europa ocidental na Idade Média, e de moedas da Espanha, México e dos Andes entre 1550 e 1750.

Entre os reinados de Felipe III (1598-1621) e Felipe V (1700-1746), a coroa espanhola empregou volumes crescentes de prata americana para pagar suas dívidas com os bancos da Europa.

A partir do filósofo francês Jean Bodin (1530-1596), vários estudiosos e economistas apontaram a possibilidade de esse fluxo de metal precioso ter sido o ingrediente principal da chamada "revolução dos preços", na realidade uma inflação acelerada na Europa.

A hipótese, assinala o estudo publicado na PNAS, "foi motivo de controvérsia recentemente e alguns autores enfatizam que a chegada dos metais americanos, aproximadamente entre 1520 e 1809, não coincide com o período de inflação, entre 1520 e 1650".

No entanto, os pesquisadores puderam provar como foi crescendo a presença de prata americana na economia europeia, e como foi substituindo a prata extraída no Velho Continente.

"Claramente a prata da antiguidade é um componente menor da base monetária medieval", dizem os pesquisadores para comprovar o impacto que a prata americana teve na economia europeia.

A análise das ligas metálicas das moedas prova como em apenas oito décadas, entre os reinados de Felipe III e Felipe V, a prata americana substituiu a europeia nas moedas da Espanha.

A busca espanhola por prata nas Américas começou já em 1498, segundo os autores da pesquisa, que acrescentaram que "no início do século XVI as minas maiores foram abertas".

Os pesquisadores afirmaram que 20% da prata extraída nas Américas permaneceu no continente, 10% foi usada para pagar tecidos, porcelanas e especiarias na Ásia, e 15% caiu nas mãos de piratas que deixavam aproximadamente 200 toneladas do metal precioso no porto de Sevilha por ano.

"Felipe II cessou os pagamentos da dívida espanhola em 1557, 1560, 1575 e 1596, e reabriu a Rio Tinto e outras minas de prata espanholas, confirmando que a prata americana não permaneceu na Espanha por muito tempo", esclarece o artigo.

A prata que chegou à Espanha "foi usada principalmente para pagar os empréstimos obtidos junto a banqueiros alemães para garantir a eleição de Carlos V e pagar outros empréstimos a banqueiros genoveses".