Preconceitos, por sua própria natureza, não são exatamente muito racionais. Por exemplo, a minha posição a respeito dos idiomas é descritivista: a linguagem é uma convenção entre seus usuários e, portanto, a maioria deles não pode estar errada. Se os dicionários dizem drible e a maior parte dos brasileiros diz dible, quem está com a razão são as pessoas nas ruas, e azar dos dicionários e do professor Pasquale. Mesmo assim, fico com vontade de subir pelas paredes quando ouço algumas dessas variações, como alguém dizendo enterter ao invés de entreter, císnei no lugar de cisne ou xalxicha no lugar de salsicha. Não faz muito sentido, mas é assim que as coisas são.
Em relação à história, as pessoas também falam o que querem o tempo todo, com a diferença de que ela envolve questões de veracidade, e não (só) de convenção. A maior parte do que se ouve são chavões que, no melhor dos casos, são apenas em parte verdade, e no mais das vezes são pelo menos 99% de bobagem. Coisas que você já deve ter ouvido também, do tipo "o Brasil não dá certo porque foi povoado por criminosos", "os chineses não têm tradição política porque ficaram milênios seguindo os imperadores", "o Ocidente é mais avançado graças à sua democracia", e por aí vai. Infelizmente, separar as meias verdades e os mitos nesses casos exige uma análise mais ou menos complexa.
O que realmente me incomoda, voltando à questão dos preconceitos, são aquelas bobagens que qualquer um poderia se dar ao trabalho de conferir se são verdade ou não. Aquelas que não envolvem grandes questões macrohistóricas, mas as pequenas anedotas que as pessoas soltam para ilustrar algum argumento.
Uma delas, que tive o desprazer de ouvir recentemente pela enésima vez, é do tipo que certamente todos já ouviram: "Incitatus, o cavalo do imperador romano Calígula, foi cônsul". É uma afirmação tão comum e corriqueira que não parece haver motivo para duvidar: afinal, Calígula era louco, e loucos não fazem coisas como dar altos cargos para seus cavalos?
Pena que é tão simples testar a veracidade do consulado de Incitatus. Vamos começar com os fatos básicos: Caio foi imperador romano de 37 a 41, e apelidado de Calígula porque, quando pequeno, seu pai, o importante general Germânico, fazia Caio acompanhá-lo pelos acampamentos militares vestido de soldadinho, e o uniforme da época incluía as caligas, sandálias usadas pelos soldados. Daí Caio ser até hoje mais conhecido como "sandalinha" - seria mais ou menos como termos um presidente filho de militares apelidado de Coturninho.
Seu curto reinado está terrivelmente mal documentado hoje em dia - temos pouquíssimos relatos escritos por pessoas que conheceram o imperador, sendo o mais importante deles a Embaixada a Caio, escrito por Fílon de Alexandria, judeu que liderou uma delegação ao imperador para reclamar dos maus tratos que a população judia estava sofrendo na metrópole egípcia.
Tirando o texto da Embaixada, sobram as obras dos historiadores. Os autores mais próximos desse período foram Suetônio e Tácito, que escreveram no começo do século 2, ou seja, quando todos os envolvidos já estavam mortos há tempo. Para complicar, não temos o relato de Tácito sobre Calígula: foi encontrada apenas uma cópia medieval das obras de Tácito, bastante incompleta, e uma das partes que faltam é exatamente a que mostrava Caio no poder. Sobra Suetônio. Ele não era exatamente um historiador, mas algo como um biógrafo sensacionalista, interessado nas anedotas bizarras, de preferência as sexuais - é culpa de Suetônio, e da falta quase completa de alternativa a ele, acharmos que tantos dos primeiros imperadores romanos eram depravados. O quanto ele disse de verdadeiro, o quanto inventou e o quanto escreveu boatos como se fossem pura verdade é um problema grande e difícil de resolver.
De volta a Calígula: as fontes que temos - Fílon, Suetônio, uma que outra passagem de Tácito e as obras de historiadores bem posteriores - são unânimes em afirmar que ele foi um péssimo imperador. Do tipo que declarou ser um deus, matava seus oponentes sem muita piedade, entre outras coisas mais. Talvez tenha tido as irmãs como amantes, se você acha que Suetônio merece confiança quanto a isso. Enfim, dois mil anos depois, é difícil saber ao certo se ele foi realmente louco ou se isso era apenas a explicação dada para justificar suas arbitrariedades - Calígula pode ter sido "apenas" um deslumbrado pelo poder, como os Saddams e Kaddafis dos nossos tempos.
Mas uma coisa que podemos dizer que ele não fez foi nomear seu cavalo cônsul. Eis o que Suetônio disse a respeito (Vida de Calígula, 55, 3): "Na véspera dos jogos circenses, ele enviava seus soldados para ordenarem a vizinhança a fazer silêncio a fim de que o cavalo Incitatus não fosse incomodado. Além de um estábulo de mármore, uma manjedoura de marfim, cobertores de púrpura e um colar de pedras preciosas, ele ainda deu ao cavalo uma casa, um conjunto de escravos e mobília, para melhor recepção dos hóspedes convidados em seu nome. E também se diz que ele planejava torná-lo cônsul".
"Se diz" e "planejava" = o cavalo não foi cônsul. É possível discutir se Incitatus realmente recebeu seu estábulo de mármore e tudo o mais, e, se recebeu, qual a motivação de Calígula - não é tão difícil imaginar um ditador convidando as pessoas a falar com seu cavalo e outras humilhações do tipo, sem que o ditador seja necessariamente insano. Talvez ele tenha dito aos políticos romanos "aposto que até meu cavalo faz o serviço de vocês", e daí começaram os boatos.
Mas vamos dizer isso mais uma vez, para garantir: Incitatus nunca foi cônsul...
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