maio 27, 2011

29. Direitos, democracia, desesperança...

Acontecem coisas tão infelizes que dão vontade de suspirar e entregar os pontos. Abandonar o posto de pracinha na luta pelo pensamento crítico e deixar os obscurantistas triunfarem.

Caso em questão: um desembargador em São Paulo proibiu na última hora - para evitar qualquer contestação judicial inconveniente - a Marcha da Maconha, manifestação pacífica pela liberação do uso dessa substância. Walter Hupsel, colunista do Yahoo, escreveu um artigo em que, sem entrar no mérito ou não da maconha, condenou a atitude pouco democrática do desembargador, que restringiu arbitrariamente o direito de expressão de diversos cidadãos, e a atitude também nada democrática da polícia militar paulistana, que cumpriu seu papel valentemente caceteando manifestantes pacíficos.

Até aí, nada fora do esperado - a truculência de agentes estatais acostumados a tratar o povo na base do autoritarismo, do canetaço, da violência, e algumas pessoas protestando contra isso. O de praxe. O que causou aquela vontade de desistir de tudo foi a reação dos leitores ao artigo de Hupsel. A grande, imensa, ululante maioria diz mais ou menos o seguinte: "eu sou contra a maconha, então aquele pessoal não tinha o direito de se manifestar".

Talvez o leitor ache que estou cometendo um exagero retórico. Para provar o contrário, aqui vão alguns dos comentários daquele site:

""não acredito que li essa porcaria…
ta se lembrando da democracia e se esquecendo do que a droga faz em nosso país."

"Só viciado em maconha para criticar a postura do Estado neste caso. Parabéns ao Judiciário e a PM."""

"Meu filho andou fumando esta merda e só perdia tempo na vida, graças a DEUS hoje esta numa igreja evangélica e tem uma nova visão da vida, esta prosperando sua feição mudou pra melhor e sua alto estima é positiva, quer saber tenho pena deste fdp de maconheiro, e esse comentarista Walter a si atribui frescura e realmente vc é fresco basta notar seus comentarios simpaticos aos gays, aliás parece que uma coisa puxa a outra gay, maconha, trafico, protituição. PAU NELES POLICE"


"Maconheiros são os primeiros financiadores da violência!!! Tem que descer o sarrafo nestes vagabundos!!!"

 Os interessados podem encontrar ali mais pérolas imortais da argumentação racional. Minhas conclusões do episódio todo:
1 - boa parte dos brasileiros não sabe ler. Até sabem juntar as sílabas, mas não conseguem entender o que leram. Não entenderam que Hupsel em nenhum momento defendeu a liberação da maconha, apenas defendeu a liberdade de expressão.
2 - as mesmas pessoas não acreditam - ou não compreendem - na democracia e nos direitos individuais. Não veem a importância da livre expressão do pensamento, ESPECIALMENTE quando se trata de opiniões impopulares - afinal, quando é para falar o que todo mundo pensa, é evidente que ninguém se opõe. Ou podemos dizer o que pensamos ou somos um rebanho. Se não existe a possibilidade de fazer movimentos propondo a mudança das leis, que sentido há em falar de democracia?
(Alguns dos críticos de Hupsel disseram que existem causas mais importantes a serem defendidas do que a maconha. Concordo. A livre expressão é uma delas. E, em um país livre, quem é que pode decidir quais causas os outros consideram importantes, ou quais problemas são dignos de solução? Cada um por si, talvez?)
3 - ligado ao ponto 2, essas pessoas não acreditam em limitação aos poderes estatais. Um magistrado restringe, por seu único e exclusivo arbítrio, a liberdade de expressão das pessoas? Ah, ordem judicial é para ser cumprida, não discutida. Policiais bateram em pessoas desarmadas que não estavam fazendo mal a ninguém? Ah, eles têm é que baixar o cacete nos vagabundos. A ideia de que o governo possa fazer burradas homéricas, ou de que temos direitos com os quais o governo não pode mexer (são direitos, não prêmios por boa conduta que podem ser tirados a qualquer minuto) parece impensável para eles.

É nessas horas que acho que, apesar de todas as críticas à política externa dos Estados Unidos, os americanos têm algumas coisas a nos ensinar. O conceito de direitos individuais, que o indivíduo possui simplesmente por existir, e ai de quem tentar tirá-los dele, por qualquer motivo que for, está firmemente arraigada ali, e não só nos setores mais caipiras da população. Um exemplo dessa diferença de atitude em um e outro país é a questão das armas. No Brasil, a polêmica sobre o plebiscito do desarmamento, há alguns anos atrás, tratava basicamente da questão da segurança. Desarmar a população iria ou não tornar as ruas mais seguras? Na maior parte do tempo, nem se tocou na legitimidade do Estado para realizar esse desarmamento. Nos Estados Unidos, por outro lado, os defensores das armas usam um argumento muito aceito por lá, mas que aqui soaria bizarro: "se desarmarem o povo, como vamos derrubar uma tirania quando ela surgir?".

Se o descaso brasileiro pelo diálogo com os diferentes, pela democracia e pelos direitos individuais é mais uma parte do nosso legado colonial português, ou mais uma herança do governo militar? Provavelmente um pouco de tudo isso. Nunca fomos muito democráticos, mesmo nos períodos em que podemos votar de vez em quando.

Talvez eu esteja equivocado e os críticos de Hupsel sejam apenas uma pequena minoria. Talvez a maior parte da população seja a favor do diálogo com palavras, não com canetaços e porretadas.
Mas, a essa altura, só acredito vendo.

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