No começo de 2003, a lei 10639 teve o efeito de um furacão entre os historiadores brasileiros: a partir daquele momento, era obrigatório o ensino de história da África e dos africanos. Uma iniciativa governamental bem intencionada, tendo em vista a importância dos africanos na formação do Brasil - o que, sem dúvida, era o que os legisladores tinham em mente. Se eles estivessem mais preocupados, quem sabe, com a importância que a África tem por si só, e achassem que o simples fato de existir uma história africana já é motivo para estudá-la, teriam tomado alguma medida adicional para preencher uma outra lacuna do nosso ensino e historiografia: uma pequena lacuna chamada Ásia...
Uma lei bem intencionada mas, como muitas coisas no Brasil, não tão bem planejada. Um mero canetaço não podia criar o ensino de história africana da noite para o dia, se não havia - com poucas, poucas exceções - pesquisadores na área, material em português, fosse acadêmico ou didático, e nem professores com conhecimento do assunto. Como os professores poderiam divulgar o que não tinham visto na universidade e não conseguiam encontrar nem nos livros didáticos nem em qualquer outro material?
Desnecessário dizer que nos anos seguintes houve uma corrida para superar essas falhas, e também desnecessário dizer que o processo continua em andamento. Acho que um dia teremos a história da África como um campo plenamente desenvolvido de ensino e pesquisa no Brasil, mas esse dia certamente ainda não chegou.
Acho também que a UNESCO concorda comigo, e é para colaborar nessa construção de um novo campo que disponibilizaram online a Coleção História Geral da África em português. Oito calhamaços gigantescos, ilustrados, escritos por especialistas, cobrindo desde a pré-história africana até o século 20.
A iniciativa é bem intencionada, e pelo que vi até agora a repercussão foi positiva: material de qualidade (e quantidade!) justamente sobre assuntos dos quais não se encontrava o que ler. Certamente, é melhor ter esses livros disponíveis gratuitamente para todos os interessados do que não tê-los, mas tenho algumas ressalvas. Acho que faltou um pouco de planejamento quanto a duas questões:
1 - a quantidade de material é imensa, vários milhares de páginas. Alguém realmente acredita que os professores de ensino fundamental e médio irão ler todo esse material apenas para dar uma ou duas aulas? Uma síntese de cem ou duzentas páginas teria mais consequências práticas do que os intimidadores oito volumes da UNESCO;
2 - a possível obsolescência dos textos, que foram publicados originalmente no início dos anos 80. Mesmo para a história, trinta anos são tempo suficiente para que muito do que está ali já tenha sido superado por pesquisas mais recentes. Não sou um grande conhecedor de história africana para testar essa hipótese, mas o primeiro volume incluiu alguns capítulos sobre um tema com o qual estou mais familiarizado: a origem da humanidade. Mesmo com um capítulo escrito por um dos maiores especialistas no assunto, Richard Leakey, o que o livro diz a respeito está defasado. Nos últimos anos, foram descobertas novas espécies, reclassificadas as já conhecidas e surgiram evidências suficientes para mudar o conhecimento da pré-história humana e tornar obsoleto o que foi escrito há mais tempo - na década de 80, por exemplo.
Por outro lado, a pré-história é uma área que avança com uma rapidez particular - em parte por se beneficiar dos avanços de outras ciências, como no que diz respeito à datação, e em parte porque as evidências para períodos mais antigos são relativamente tão escassas que um único fóssil em bom estado pode colocar de ponta-cabeça tudo que se sabia anteriormente. O resto da coleção pode muito bem estar dentro do seu prazo de validade. Assim espero.
Ceticismo à parte, a iniciativa da UNESCO é bem-vinda. Só resta torcer para que ela seja um ponto de partida, não de chegada, e que nossos africanistas solucionem as eventuais falhas do material.
Onde o ontem vive no hoje. Notas sobre a história, a ciência histórica e a vida acadêmica para leitores curiosos.
dezembro 20, 2010
dezembro 19, 2010
8. Links
Dei um pequeno passo para reafirmar o caráter "permanentemente em construção" deste blog e acrescentei, no topo e à esquerda, uma pequena lista de links - provavelmente ela crescerá no futuro, mas vamos por partes.
Os três primeiros contemplados foram blogs que costumo acompanhar:
Diplomatizzando não é um blog sobre história, mas sobre política e relações internacionais, mantido pelo diplomata e escritor prolífico Paulo Roberto de Almeida (que também é uma das pessoas simpáticas que conheci durante uma estada desastrosa em Brasília).
Tenho evitado até agora neste blog, e continuarei evitando no futuro, discussões políticas. Não sou um especialista no assunto, e escrever sobre política muitas vezes tem o efeito de uma pregação para os já convertidos: quem já concordava com uma ideia continua concordando, quem já discordava continua discordando, e todos seguem como antes. A pouca "discussão" em geral assume mais a forma de ataques ad hominem ou um diálogo de surdos do que um debate propriamente dito.
Mas, como existem pessoas que gostam de ler a respeito, fica esse link como possibilidade de conhecer as opiniões de alguém que sabe do que está falando e não foge das controvérsias. Concordem ou não com ele, os textos de PRA são leituras interessantes. Para quem não concordar com as opiniões dele, sempre resta a opção de ver o que o inimigo está dizendo...
História UPF é o blog do departamento de história da UPF, onde faço mestrado atualmente, e é mantido quase que exclusivamente pela minha orientadora, a prof. Gizele Zanotto. O conteúdo inclui, além das notícias institucionais, posts frequentes do tipo "neste dia, há tantos anos atrás, aconteceu tal coisa". Uma opção complementar para quem vem aqui esperando aprender algo sobre história.
Orientalismo é o blog de André Bueno, um dos raríssimos sinólogos (especialistas em China) que temos no Brasil. Basicamente, trata-se de uma mina de ouro labiríntica e cheia de informações, textos e fontes sobre história chinesa. Considerando que a China foi por séculos o maior polo econômico mundial e agora está empenhada em recuperar essa posição, o desconhecimento sobre o Reino do Meio que persiste por aqui vicia desgraçadamente nossa visão da história. Uma caminhada pelos meandros do "Orientalismo" é uma maneira agradável de começar a corrigir essa ignorância.
Os três primeiros contemplados foram blogs que costumo acompanhar:
Diplomatizzando não é um blog sobre história, mas sobre política e relações internacionais, mantido pelo diplomata e escritor prolífico Paulo Roberto de Almeida (que também é uma das pessoas simpáticas que conheci durante uma estada desastrosa em Brasília).
Tenho evitado até agora neste blog, e continuarei evitando no futuro, discussões políticas. Não sou um especialista no assunto, e escrever sobre política muitas vezes tem o efeito de uma pregação para os já convertidos: quem já concordava com uma ideia continua concordando, quem já discordava continua discordando, e todos seguem como antes. A pouca "discussão" em geral assume mais a forma de ataques ad hominem ou um diálogo de surdos do que um debate propriamente dito.
Mas, como existem pessoas que gostam de ler a respeito, fica esse link como possibilidade de conhecer as opiniões de alguém que sabe do que está falando e não foge das controvérsias. Concordem ou não com ele, os textos de PRA são leituras interessantes. Para quem não concordar com as opiniões dele, sempre resta a opção de ver o que o inimigo está dizendo...
História UPF é o blog do departamento de história da UPF, onde faço mestrado atualmente, e é mantido quase que exclusivamente pela minha orientadora, a prof. Gizele Zanotto. O conteúdo inclui, além das notícias institucionais, posts frequentes do tipo "neste dia, há tantos anos atrás, aconteceu tal coisa". Uma opção complementar para quem vem aqui esperando aprender algo sobre história.
Orientalismo é o blog de André Bueno, um dos raríssimos sinólogos (especialistas em China) que temos no Brasil. Basicamente, trata-se de uma mina de ouro labiríntica e cheia de informações, textos e fontes sobre história chinesa. Considerando que a China foi por séculos o maior polo econômico mundial e agora está empenhada em recuperar essa posição, o desconhecimento sobre o Reino do Meio que persiste por aqui vicia desgraçadamente nossa visão da história. Uma caminhada pelos meandros do "Orientalismo" é uma maneira agradável de começar a corrigir essa ignorância.
dezembro 16, 2010
7. Sobre doenças e homens
A última grande notícia na internet é a suposta descoberta de uma cura para a AIDS. O que aconteceu, na verdade, foi a publicação de um artigo confirmando que um paciente, Timothy Brown, submetido a tratamento com células tronco em 2007, não apresentou sinais de HIV desde então. Por “tratamento” leia-se um transplante de medula óssea, realizado para tratar leucemia; o doador tinha resistência natural ao HIV e a resistência foi transmitida ao receptor. Ainda não é a cura da doença: o método é caro demais, arriscado demais para os pacientes e envolve encontrar doadores resistentes ao HIV que sejam compatíveis com os infectados. Se Brown tem muito o que comemorar, para o resto do mundo fica apenas um vislumbre de uma vitória ainda distante contra essa doença.
Falando em doenças, talvez elas não sejam um tema apropriado para conversas leves, mas vou aproveitar a oportunidade porque esse é um assunto sobre o qual muito pode ser dito. As doenças e a luta contra elas têm sido não só uma parte integrante do nosso dia-a-dia (alguém ainda lembra da histeria em torno da gripe suína?), o que já seria extremamente importante, mas por vezes entraram no palco dos acontecimentos de forma mais drástica. Dois casos familiares foram a Revolta da Vacina, no Rio de Janeiro do começo do século passado, e a peste bubônica que assolou o Velho Mundo nos séculos 6 e 14 (não, a peste negra não atacou só uma vez). Mas houve um caso que ajuda a explicar algumas coisas em nossas vidas que normalmente não paramos para considerar: por que falamos português e não uma língua tupi? Por que a imensa maioria dos brasileiros descende de imigrantes (voluntários ou não) da África e Eurásia, e poucos descendem de índios? Por que, não só no atual território brasileiro mas em todo o continente americano, os índios foram subjugados, ao invés de expulsarem o que no início era um punhado de conquistadores?
Como sempre, a resposta tem muitas partes. Para começar, não faz sentido achar que os habitantes daqui se viam como “índios”, membros de algum tipo de grande comunidade continental e que deviam se unir contra um inimigo comum. Mais ou menos como os europeus, eles eram membros de grupos que tinham suas próprias relações e conflitos, e mais de uma vez envolveram os europeus em suas guerras – um dos recursos de Cortez para conquistar o império asteca mexicano foi o auxílio de povos que não estavam satisfeitos com sua dominação pelos astecas, e que contribuíram com exércitos muito maiores do que o bando de conquistadores espanhóis. Com o tempo, quem ganhou com isso foram os europeus, mas não havia como saber na época que seria uma má ideia recrutar os recém-chegados como aliados.
(Colocando de outra forma: antes de Colombo, não existiam índios na América. Existiam incas, astecas, maias, tupis, guaranis, apaches, sioux e centenas de outros povos diferentes. Foram os europeus que colocaram todos eles no mesmo saco, chamando todos de índios.)
Mas voltemos às doenças, que foram ainda mais importantes. O segredo do sucesso de espanhóis e portugueses era a sua capacidade de transmitir doenças às quais os nativos não tinham resistência. Os europeus pertenciam a sociedades em que os animais domésticos estavam por toda parte em contato com humanos. Grande parte das doenças humanas surgiu de parasitas de animais que mutaram para infectar humanos (a gripe suína, como o nome diz, originou-se nos porcos, por exemplo). Ao longo dos milênios, animais transmitiram doenças para seres humanos, que aos poucos foram adquirindo resistência (ou, melhor dizendo, as pessoas mais resistentes às doenças tinham maior chance de sobreviver e ter filhos). E, quando os europeus chegaram na América, seu arsenal biológico acumulado ao longo do tempo devastou populações que nunca haviam tido contato com esses germes. Além de matar milhões, as epidemias espalharam o caos pelas sociedades nativas; por exemplo, Pizarro conquistou o império inca dos Andes com um pequeno grupo de conquistadores, em grande parte porque a varíola havia chegado antes dele, como uma onda de destruição transmitida de região a região, e matado o inca, ou imperador, iniciando uma guerra civil pela sucessão ao trono da qual os espanhóis se aproveitaram. Se hoje em dia doenças que matam algumas centenas de pessoas já geram pânico, tente imaginar uma que, aparentemente surgida do nada, destruísse uma porcentagem significativa da população, incluindo as lideranças do governo. Foi isso que os incas enfrentaram na década de 1530, antes que o primeiro espanhol chegasse em suas terras. Não chega a ser surpreendente que eles tenham sido conquistados nessas circunstâncias; o que realmente causa surpresa é que ainda tenham montado uma resistência à conquista, liderada por remanescentes da família real – o último soberano inca, Tupac Amaru, foi capturado e executado apenas em 1572.
Porque os europeus não foram mortos pelas doenças infecciosas americanas? Simplesmente porque não havia muitas. Os europeus adquiriram doenças com seus animais domésticos, o que os índios não podiam fazer porque no continente americano quase não havia animais domesticáveis. A falta de animais levou a uma falta de doenças transmissíveis capazes de destruir os europeus, e isso decidiu a sorte de nosso continente.
Essa tese foi popularizada por Jared Diamond em seu Armas, germes e aço, um livro bastante controverso entre a comunidade acadêmica e muitas vezes acusado de determinismo geográfico. Em todo caso, a polêmica diz respeito a outras partes do livro, e a importância dos germes na conquista da América é amplamente reconhecida.
Mais um fato importante: essas mesmas doenças contribuíram para que a maior parte dos escravos do Brasil fossem importados da África, e não índios capturados localmente. Um índio tinha grande chance de morrer doente em pouco tempo, enquanto que um africano – com mais resistência às doenças dos europeus, que eram as mesmas de todo o Velho Mundo – tinha maior probabilidade de sobreviver, daí isso o maior investimento em africanos. Não que a escravidão indígena tenha sido abandonada por inteiro, principalmente na região de São Paulo, onde as bandeiras tinham como um de seus objetivos precisamente resolver o problema da mão-de-obra do que então era uma área periférica demais para manter o tráfico negreiro em grandes proporções.
Doenças e economia, gente, e não besteiras como “vagabundagem dos índios” ou “docilidade dos negros”, eis o que determinou os rumos da escravidão no Brasil; entender isso nos ajudaria não só a perceber o que realmente aconteceu, mas também a esquecer esses e outros preconceitos.
dezembro 12, 2010
6. Mulheres, história, literatura
De todos os grupos minoritários que costumamos esquecer de incluir na história, cabe papel de destaque para um que não tem nada de minoritário e consiste, na verdade, em metade da população mundial. Estou falando, naturalmente, das mulheres.
Isso se deve, em grande parte, ao fato de que elas tradicionalmente ficaram mais ou menos relegadas à vida doméstica, privada, enquanto a história por muito tempo se concentrou nos grandes acontecimentos da vida pública. Esse foco está mudando aos poucos, mas a essência permanece. Se um leitor me disser que gosta da Grécia antiga, posso supor com bastante segurança que ele sabe um pouco sobre a alta cultura - a tríade filosófica Sócrates-Platão-Aristóteles, a tríade de dramaturgos trágicos Ésquilo-Sófocles-Eurípides, a tríade de historiadores Heródoto-Tucídides-Políbio, poetas como Homero, cientistas como Arquimedes - e um pouco sobre os grandes acontecimentos políticos e militares - a construção da democracia ateniense, as guerras com os persas, a Guerra do Peloponeso, a ascensão de Alexandre - mas provavelmente sabe pouco ou nada de como viviam os gregos em seu dia-a-dia. Como o envolvimento feminino na alta cultura, na política e na guerra na Grécia clássica eram bastante desencorajados, para dizer o mínimo, ele só saberá que terão existido mulheres ali porque, de alguma forma, todos esses homens famosos precisavam se reproduzir.
A Grécia clássica é um caso extremo, e em geral as mulheres encontraram formas de participar da vida pública e dos grandes acontecimentos. Algumas foram rainhas reinantes, de Hatshepsut e Cleópatra às duas Elizabeths da Inglaterra e Catarina da Rússia. Outras eram o poder por trás do trono: Lívia, esposa do primeiro imperador romano, Augusto, era tão temida quanto o marido. Voltando a um tema anterior, é extremamente provável que Nero tenha matado sua mãe, Agripina. Ele fez isso por ser mau e bandido? Não exatamente; na verdade, ele respondeu do seu modo violento a um problema sério para qualquer imperador megalomaníaco de respeito: a influência política de Agripina era comparável a do próprio Nero, e dizia-se que ela tinha envenenado o imperador anterior, Cláudio, para apressar a subida de Nero ao poder. Se casar com um imperador, envenená-lo e continuar exercendo força política através do filho por alguns anos não é uma carreira importante, não sei o que é.
Além das rainhas, as mulheres estiveram em quase todos os campos possíveis. Elas foram desde cientistas, como Marie Curie e a marquesa du Châtelet (mais conhecida por ser amante de Voltaire, também contribuiu para a física do século 18) até ativistas, como Mary Shelley (a mesma de Frankenstein) e Olympe de Gouges, que em plena Revolução Francesa propôs uma Declaração dos Direitos da Mulher. Mas a ideia de Olympe não deu certo, e seu carrasco Robespierre continua sendo mais conhecido do que dela.
Contudo, integrar as mulheres na história não pode ser feito simplesmente mencionando exceções como essas. Apesar de todas essas mulheres terem levado vidas interessantes, elas foram algumas das raras "vencedoras" em um jogo em que a maioria não tinha como vencer e realizar grandes feitos (o que também se aplica à maior parte dos homens). Mencionar Olympe de Gouges numa história da Revolução Francesa simplesmente substitui uma história dos grandes homens por uma dos "grandes homens... e uma mulher", quando a maior parte dos homens não era como Robespierre, Danton ou Napoleão, e a maior parte das mulheres não era como Olympe.
Uma alternativa é partir para os grandes processos históricos e ignorar o indivíduo, fazendo uma história da Revolução Francesa voltada para a ascensão da burguesia e do nacionalismo, ou o que for, e que possa passar igualmente sem Olympes e Robespierres. Para mim, os processos são importantes, mas pensar só neles é tirar o "cheiro de humanidade" da história, e atribuir toda a capacidade de agir e realizar mudanças a forças impessoais e não a pessoas concretas. Sinto muito, mas acho que não funciona.
O que pode funcionar é aumentar nossos horizontes gradualmente, até que alguém encontre uma maneira de juntar todas as pontas soltas. Como um exemplo disso, gostaria de mostrar um pedaço da história, muito ignorado por aqui, onde as mulheres tiveram participação importante - o Japão antigo.
O Japão atual é um lugar um tanto machista, e a imagem que se faz do japonês antigo (como a do gaúcho tradicional), é a do homem guerreiro, honrado e viril, como se alguma vez todos os japoneses tivessem sido samurais perfeitos. Deixando de lado as seleções e idealizações inerentes aos tradicionalismos, tanto os de CTGs quando os de escolas de artes marciais, os samurais não governaram o Japão desde sempre. E antes deles, o Japão era um lugar diferente.
O período Heian começou em 794, com a construção da nova capital Heian-kyô, Capital da paz e tranquilidade (atual Kyoto), e terminou em 1192, quando Minamoto no Yoritomo tornou-se o primeiro xogum, ou governante militar, inaugurando um estilo de governo pelos guerreiros que duraria até o século 19. Apenas no final do período Heian os guerreiros das províncias começaram a se aproximar do poder; por séculos, o Japão foi governado por um imperador semidivino e sua corte de civis refinados, onde as disputas políticas não eram decididas pelas armas, mas pelo prestígio. Pertencer a uma família nobre e ter um bom currículo na administração não bastava para cair nas graças do imperador ou de seus regentes do clã Fujiwara: era preciso ser sofisticado, conhecer a cultura chinesa, ter uma caligrafia elegante, saber fazer incenso ou jogar bola, mostrar apreciação pelas coisas belas da vida e, mais importante, dominar a arte da poesia.
(Quanto à cultura chinesa, ela por séculos foi no leste asiático o que a cultura greco-romana foi na Europa: o modelo a ser seguido e imitado.)
Hoje a poesia tem sua importância cultural diminuída em toda parte, exceto na forma de música, o que torna difícil entender como ela era essencial para os aristocratas do Japão Heian. Os poemas que eles compunham de improviso pressupunham erudição e conhecimento de poesia japonesa e chinesa, que possibilitavam todo tipo de referências sutis que apenas os entendidos compreenderiam. Fazer um poema, então, era uma mostra de boa formação e uma chance de falar nas entrelinhas: um poeta que conseguisse xingar um rival fazendo referência aos clássicos literários ganhava a apreciação de todos, especialmente se o insulto fosse tão inteligente que todos rissem do rival sem que ele percebesse o que tinha acontecido.
Nessa sociedade de corte, as mulheres tinham sua chance de brilhar, e elas eram participantes ativas da cultura de elite. Elas faziam a moda, faziam seus poemas para competir entre si por fama e para impressionar os homens, consumiam a literatura da época - e produziam essa literatura. Diversos clássicos da literatura japonesa foram escritos pelas nobres de Heian-Kyô, boa parte deles sendo relatos de vida, entre diários e autobiografias, muito antes de essa literatura intimista entrar em voga na literatura ocidental. O mais famoso de todos (e acredito que o único lançado em português) é o Livro de travesseiro (Makura no soshi) de Sei Shônagon, dama de companhia de uma imperatriz, escrito por volta do ano mil. O Livro de travesseiro é uma coletânea caótica e fascinante dos pensamentos da autora, incluindo dezenas de listas ("coisas que provocam impaciência", "bons temas de poesia", "coisas que não podem ser comparadas") e episódios da vida na corte, principalmente os momentos em que ela e sua imperatriz brilhavam.
Murasaki Shikibu, dama de companhia de uma imperatriz rival (os imperadores podiam ter diversas esposas e concubinas, cada uma tendo o apoio da facção de seus parentes, e assim as preferências do imperador eram uma questão política), também escreveu um diário (onde, previsivelmente, louvava sua imperatriz e criticava Sei Shônagon) e, mais importante, a História de Genji (Genji monogatari), a história ficcional de Genji, o príncipe brilhante, que alguns classificam como o primeiro romance escrito. E que, também previsivelmente, não foi lançada no Brasil.
Isso se deve, em grande parte, ao fato de que elas tradicionalmente ficaram mais ou menos relegadas à vida doméstica, privada, enquanto a história por muito tempo se concentrou nos grandes acontecimentos da vida pública. Esse foco está mudando aos poucos, mas a essência permanece. Se um leitor me disser que gosta da Grécia antiga, posso supor com bastante segurança que ele sabe um pouco sobre a alta cultura - a tríade filosófica Sócrates-Platão-Aristóteles, a tríade de dramaturgos trágicos Ésquilo-Sófocles-Eurípides, a tríade de historiadores Heródoto-Tucídides-Políbio, poetas como Homero, cientistas como Arquimedes - e um pouco sobre os grandes acontecimentos políticos e militares - a construção da democracia ateniense, as guerras com os persas, a Guerra do Peloponeso, a ascensão de Alexandre - mas provavelmente sabe pouco ou nada de como viviam os gregos em seu dia-a-dia. Como o envolvimento feminino na alta cultura, na política e na guerra na Grécia clássica eram bastante desencorajados, para dizer o mínimo, ele só saberá que terão existido mulheres ali porque, de alguma forma, todos esses homens famosos precisavam se reproduzir.
A Grécia clássica é um caso extremo, e em geral as mulheres encontraram formas de participar da vida pública e dos grandes acontecimentos. Algumas foram rainhas reinantes, de Hatshepsut e Cleópatra às duas Elizabeths da Inglaterra e Catarina da Rússia. Outras eram o poder por trás do trono: Lívia, esposa do primeiro imperador romano, Augusto, era tão temida quanto o marido. Voltando a um tema anterior, é extremamente provável que Nero tenha matado sua mãe, Agripina. Ele fez isso por ser mau e bandido? Não exatamente; na verdade, ele respondeu do seu modo violento a um problema sério para qualquer imperador megalomaníaco de respeito: a influência política de Agripina era comparável a do próprio Nero, e dizia-se que ela tinha envenenado o imperador anterior, Cláudio, para apressar a subida de Nero ao poder. Se casar com um imperador, envenená-lo e continuar exercendo força política através do filho por alguns anos não é uma carreira importante, não sei o que é.
Além das rainhas, as mulheres estiveram em quase todos os campos possíveis. Elas foram desde cientistas, como Marie Curie e a marquesa du Châtelet (mais conhecida por ser amante de Voltaire, também contribuiu para a física do século 18) até ativistas, como Mary Shelley (a mesma de Frankenstein) e Olympe de Gouges, que em plena Revolução Francesa propôs uma Declaração dos Direitos da Mulher. Mas a ideia de Olympe não deu certo, e seu carrasco Robespierre continua sendo mais conhecido do que dela.
Contudo, integrar as mulheres na história não pode ser feito simplesmente mencionando exceções como essas. Apesar de todas essas mulheres terem levado vidas interessantes, elas foram algumas das raras "vencedoras" em um jogo em que a maioria não tinha como vencer e realizar grandes feitos (o que também se aplica à maior parte dos homens). Mencionar Olympe de Gouges numa história da Revolução Francesa simplesmente substitui uma história dos grandes homens por uma dos "grandes homens... e uma mulher", quando a maior parte dos homens não era como Robespierre, Danton ou Napoleão, e a maior parte das mulheres não era como Olympe.
Uma alternativa é partir para os grandes processos históricos e ignorar o indivíduo, fazendo uma história da Revolução Francesa voltada para a ascensão da burguesia e do nacionalismo, ou o que for, e que possa passar igualmente sem Olympes e Robespierres. Para mim, os processos são importantes, mas pensar só neles é tirar o "cheiro de humanidade" da história, e atribuir toda a capacidade de agir e realizar mudanças a forças impessoais e não a pessoas concretas. Sinto muito, mas acho que não funciona.
O que pode funcionar é aumentar nossos horizontes gradualmente, até que alguém encontre uma maneira de juntar todas as pontas soltas. Como um exemplo disso, gostaria de mostrar um pedaço da história, muito ignorado por aqui, onde as mulheres tiveram participação importante - o Japão antigo.
O Japão atual é um lugar um tanto machista, e a imagem que se faz do japonês antigo (como a do gaúcho tradicional), é a do homem guerreiro, honrado e viril, como se alguma vez todos os japoneses tivessem sido samurais perfeitos. Deixando de lado as seleções e idealizações inerentes aos tradicionalismos, tanto os de CTGs quando os de escolas de artes marciais, os samurais não governaram o Japão desde sempre. E antes deles, o Japão era um lugar diferente.
O período Heian começou em 794, com a construção da nova capital Heian-kyô, Capital da paz e tranquilidade (atual Kyoto), e terminou em 1192, quando Minamoto no Yoritomo tornou-se o primeiro xogum, ou governante militar, inaugurando um estilo de governo pelos guerreiros que duraria até o século 19. Apenas no final do período Heian os guerreiros das províncias começaram a se aproximar do poder; por séculos, o Japão foi governado por um imperador semidivino e sua corte de civis refinados, onde as disputas políticas não eram decididas pelas armas, mas pelo prestígio. Pertencer a uma família nobre e ter um bom currículo na administração não bastava para cair nas graças do imperador ou de seus regentes do clã Fujiwara: era preciso ser sofisticado, conhecer a cultura chinesa, ter uma caligrafia elegante, saber fazer incenso ou jogar bola, mostrar apreciação pelas coisas belas da vida e, mais importante, dominar a arte da poesia.
(Quanto à cultura chinesa, ela por séculos foi no leste asiático o que a cultura greco-romana foi na Europa: o modelo a ser seguido e imitado.)
Hoje a poesia tem sua importância cultural diminuída em toda parte, exceto na forma de música, o que torna difícil entender como ela era essencial para os aristocratas do Japão Heian. Os poemas que eles compunham de improviso pressupunham erudição e conhecimento de poesia japonesa e chinesa, que possibilitavam todo tipo de referências sutis que apenas os entendidos compreenderiam. Fazer um poema, então, era uma mostra de boa formação e uma chance de falar nas entrelinhas: um poeta que conseguisse xingar um rival fazendo referência aos clássicos literários ganhava a apreciação de todos, especialmente se o insulto fosse tão inteligente que todos rissem do rival sem que ele percebesse o que tinha acontecido.
Nessa sociedade de corte, as mulheres tinham sua chance de brilhar, e elas eram participantes ativas da cultura de elite. Elas faziam a moda, faziam seus poemas para competir entre si por fama e para impressionar os homens, consumiam a literatura da época - e produziam essa literatura. Diversos clássicos da literatura japonesa foram escritos pelas nobres de Heian-Kyô, boa parte deles sendo relatos de vida, entre diários e autobiografias, muito antes de essa literatura intimista entrar em voga na literatura ocidental. O mais famoso de todos (e acredito que o único lançado em português) é o Livro de travesseiro (Makura no soshi) de Sei Shônagon, dama de companhia de uma imperatriz, escrito por volta do ano mil. O Livro de travesseiro é uma coletânea caótica e fascinante dos pensamentos da autora, incluindo dezenas de listas ("coisas que provocam impaciência", "bons temas de poesia", "coisas que não podem ser comparadas") e episódios da vida na corte, principalmente os momentos em que ela e sua imperatriz brilhavam.
Murasaki Shikibu, dama de companhia de uma imperatriz rival (os imperadores podiam ter diversas esposas e concubinas, cada uma tendo o apoio da facção de seus parentes, e assim as preferências do imperador eram uma questão política), também escreveu um diário (onde, previsivelmente, louvava sua imperatriz e criticava Sei Shônagon) e, mais importante, a História de Genji (Genji monogatari), a história ficcional de Genji, o príncipe brilhante, que alguns classificam como o primeiro romance escrito. E que, também previsivelmente, não foi lançada no Brasil.
dezembro 08, 2010
5. As 210 causas da queda de Roma
No último post, quis mostrar as dificuldades que temos ao tentar descobrir o que "realmente aconteceu", e como às vezes isso é praticamente impossível - o melhor que se consegue é ficar entre duas ou três interpretações coerentes, mas sem motivos para preferir uma delas à outra. O caso de Nero, por mais interessante que seja, é relativamente simples: o que uma pessoa fez durante alguns anos. As dificuldades aumentam infinitamente quando o problema estudado é mais complexo; talvez o exemplo mais extremo, pela atenção que recebeu de inúmeros estudiosos pelos últimos séculos, seja o da queda de Roma (por Roma entenda-se a parte ocidental do império, cuja capital no século 5 já não era a cidade de Roma).
O historiador alemão Alexander Demandt reuniu em um livro as 210 causas que já haviam sido usadas para explicar a queda de Roma. Como o livro é de 1984, certamente surgiu mais um punhado de possibilidades desde então, mas Demandt serve como ponto de partida. A lista completa pode ser vista aqui (em inglês), e coloquei abaixo alguns dos destaques:
1 - abolição dos deuses;
2 - abolição dos direitos;
3 - ausência de caráter;
4 - absolutismo;
5 - questão agrária;
6 - escravidão agrária;
7 - anarquia;
8 - antigermanismo;
9 - apatia;
10 - aristocracia;
11 - ascetismo;
12 - ataque dos germanos;
13 - ataque dos hunos;
14 - ataque de cavaleiros nômades;
21 - bolchevização;
23 - burocracia;
26 - capitalismo;
29 - celibato;
30 - centralização;
32 - cristianismo;
33 - concessão de cidadania;
34 - guerra civil;
36 - comunismo;
43 - excessos culinários;
44 - neurose cultural;
45 - descentralização;
46 - declínio do caráter nórdico;
50 - degeneração;
61 - desarmamento;
68 - emancipação dos escravos;
70 - epidemias;
73 - escapismo;
76 - excesso de civilização;
78 - excesso de infiltração estrangeira;
84 - emancipação feminina;
85 - feudalização;
90 - hedonismo;
93 - homossexualidade;
97 - grandeza desmedida;
107 - inflação;
110 - irracionalidade;
111 - influência judaica;
121 - envenenamento por chumbo;
122 - letargia;
135 - militarismo;
139 - declínio moral;
148 - pacifismo;
157 - politeísmo;
158 - pressão populacional;
164 - psicoses;
165 - banhos públicos;
166 - degeneração racial;
169 - racionalismo;
179 - ruína da classe média;
187 - escravidão;
189 - socialismo de Estado;
196 - fraqueza estrutural;
199 - terrorismo;
201 - totalitarismo;
210 - vulgarização.
Algumas dessas "causas" não devem ser defendidas por ninguém desde o final da II Guerra (degeneração racial? Declínio do caráter nórdico? Influência judaica?), mas só as 60 que selecionei aqui já explicam a ascensão e a queda de praticamente qualquer coisa. Quando o mesmo fenômeno já foi atribuído ao capitalismo e ao comunismo, à anarquia, ao totalitarismo e à feudalização, ao militarismo e ao pacifismo, à centralização e à descentralização, ao racionalismo e à irracionalidade, temos um problema. O que as 210 hipóteses têm em comum é que são absurdas, ou contraditórias, ou vagas demais (incluindo a minha preferida, "fraqueza estrutural"), ou impossíveis de testar (como podemos medir o declínio moral ou o excesso de civilização?), ou ocorreram em muito pequena escala para explicar tudo (terrorismo, envenenamento por chumbo), ou, finalmente, não explicam porque apenas a metade ocidental e mais pobre do império caiu.
Para dizer a verdade, nem todas elas são ruins, e algumas só parecem absurdas quando sintetizadas em uma frase. Os ataques dos germanos tiveram alguma relação com a crise, e a fraqueza estrutural, se bem definida, também - o que leva à velha questão: Roma morreu ou foi assassinada? Caiu pelos ataques de fora ou porque estava enfraquecida demais para resistir a eles? E precisa ser por um motivo ou outro, como se as coisas não estivessem ligadas entre si?
Ou - Demandt não colocou essa possibilidade na lista, mas é uma hipótese interessante - será que Roma não caiu? A parte oriental do império, a mais populosa e rica, sobreviveu por mais um milênio, e seus habitantes se consideravam romanos até o fim, mesmo que hoje muitos os chamem de "bizantinos". A parte ocidental se fragmentou e deixou de ter um imperador em 476, mas os reis que surgiram em seu lugar eram fiéis, pelo menos teoricamente, ao imperador em Constantinopla, e em geral faziam o possível para manter o que pudessem de "romanidade" em seus territórios - afinal, a população que havia vivido sob os Césares era a mesma que agora servia aos reis visigodos, francos, etc. A tese continuísta tem seus defensores, e contribuiu para enriquecer a compreensão da cultura e da sociedade do período que se denominou Antiguidade Tardia - cujos limites são imprecisos, mas iriam, no extremo, de 200 a 800 - vista agora não pelo ângulo do "declínio", mas por seus aspectos criativos: a cristianização da sociedade, a transformação do cristianismo, a síntese cultural entre germanos e romanos, e por aí vai.
Entre os continuístas e os adeptos da "queda de Roma", com suas múltiplas hipóteses, o debate continua, e certamente vai continuar assim por bastante tempo. Para quem precisar de assunto para uma tese, sempre é possível tentar subverter as explicações e, quem sabe, atribuir a continuidade de Roma à emancipação feminina, aos excessos culinários e aos banhos públicos.
O historiador alemão Alexander Demandt reuniu em um livro as 210 causas que já haviam sido usadas para explicar a queda de Roma. Como o livro é de 1984, certamente surgiu mais um punhado de possibilidades desde então, mas Demandt serve como ponto de partida. A lista completa pode ser vista aqui (em inglês), e coloquei abaixo alguns dos destaques:
1 - abolição dos deuses;
2 - abolição dos direitos;
3 - ausência de caráter;
4 - absolutismo;
5 - questão agrária;
6 - escravidão agrária;
7 - anarquia;
8 - antigermanismo;
9 - apatia;
10 - aristocracia;
11 - ascetismo;
12 - ataque dos germanos;
13 - ataque dos hunos;
14 - ataque de cavaleiros nômades;
21 - bolchevização;
23 - burocracia;
26 - capitalismo;
29 - celibato;
30 - centralização;
32 - cristianismo;
33 - concessão de cidadania;
34 - guerra civil;
36 - comunismo;
43 - excessos culinários;
44 - neurose cultural;
45 - descentralização;
46 - declínio do caráter nórdico;
50 - degeneração;
61 - desarmamento;
68 - emancipação dos escravos;
70 - epidemias;
73 - escapismo;
76 - excesso de civilização;
78 - excesso de infiltração estrangeira;
84 - emancipação feminina;
85 - feudalização;
90 - hedonismo;
93 - homossexualidade;
97 - grandeza desmedida;
107 - inflação;
110 - irracionalidade;
111 - influência judaica;
121 - envenenamento por chumbo;
122 - letargia;
135 - militarismo;
139 - declínio moral;
148 - pacifismo;
157 - politeísmo;
158 - pressão populacional;
164 - psicoses;
165 - banhos públicos;
166 - degeneração racial;
169 - racionalismo;
179 - ruína da classe média;
187 - escravidão;
189 - socialismo de Estado;
196 - fraqueza estrutural;
199 - terrorismo;
201 - totalitarismo;
210 - vulgarização.
Algumas dessas "causas" não devem ser defendidas por ninguém desde o final da II Guerra (degeneração racial? Declínio do caráter nórdico? Influência judaica?), mas só as 60 que selecionei aqui já explicam a ascensão e a queda de praticamente qualquer coisa. Quando o mesmo fenômeno já foi atribuído ao capitalismo e ao comunismo, à anarquia, ao totalitarismo e à feudalização, ao militarismo e ao pacifismo, à centralização e à descentralização, ao racionalismo e à irracionalidade, temos um problema. O que as 210 hipóteses têm em comum é que são absurdas, ou contraditórias, ou vagas demais (incluindo a minha preferida, "fraqueza estrutural"), ou impossíveis de testar (como podemos medir o declínio moral ou o excesso de civilização?), ou ocorreram em muito pequena escala para explicar tudo (terrorismo, envenenamento por chumbo), ou, finalmente, não explicam porque apenas a metade ocidental e mais pobre do império caiu.
Para dizer a verdade, nem todas elas são ruins, e algumas só parecem absurdas quando sintetizadas em uma frase. Os ataques dos germanos tiveram alguma relação com a crise, e a fraqueza estrutural, se bem definida, também - o que leva à velha questão: Roma morreu ou foi assassinada? Caiu pelos ataques de fora ou porque estava enfraquecida demais para resistir a eles? E precisa ser por um motivo ou outro, como se as coisas não estivessem ligadas entre si?
Ou - Demandt não colocou essa possibilidade na lista, mas é uma hipótese interessante - será que Roma não caiu? A parte oriental do império, a mais populosa e rica, sobreviveu por mais um milênio, e seus habitantes se consideravam romanos até o fim, mesmo que hoje muitos os chamem de "bizantinos". A parte ocidental se fragmentou e deixou de ter um imperador em 476, mas os reis que surgiram em seu lugar eram fiéis, pelo menos teoricamente, ao imperador em Constantinopla, e em geral faziam o possível para manter o que pudessem de "romanidade" em seus territórios - afinal, a população que havia vivido sob os Césares era a mesma que agora servia aos reis visigodos, francos, etc. A tese continuísta tem seus defensores, e contribuiu para enriquecer a compreensão da cultura e da sociedade do período que se denominou Antiguidade Tardia - cujos limites são imprecisos, mas iriam, no extremo, de 200 a 800 - vista agora não pelo ângulo do "declínio", mas por seus aspectos criativos: a cristianização da sociedade, a transformação do cristianismo, a síntese cultural entre germanos e romanos, e por aí vai.
Entre os continuístas e os adeptos da "queda de Roma", com suas múltiplas hipóteses, o debate continua, e certamente vai continuar assim por bastante tempo. Para quem precisar de assunto para uma tese, sempre é possível tentar subverter as explicações e, quem sabe, atribuir a continuidade de Roma à emancipação feminina, aos excessos culinários e aos banhos públicos.
dezembro 05, 2010
4. Nero e os limites do conhecimento
Existem três coisas que são de conhecimento geral sobre o imperador romano Nero (quinto imperador, governou de 54 até 68):
1 - ele era maaaaau e bandido;
2 - de tão mau, colocou fogo em Roma. De tão bandido, tocou lira e cantou durante o incêndio;
3 - de tão mau, perseguiu cristãos. De tão bandido, matou os apóstolos Pedro e Paulo.
Existem outros fatozinhos mais ou menos conhecidos - ele matou também a própria mãe, se considerava um artista, a população celebrou a sua morte - e todos contribuem para formar a imagem de um vilão insano, digno de filmes de James Bond.
Em outras palavras, Nero se tornou praticamente um símbolo perfeito de uma das concepções que as pessoas fazem de Roma: a de um império moralmente corrompido, entregue a orgias, com uma sucessão de tiranos homicidas no governo, que passavam seus dias entre as festas e atirar os cristãos aos leões. De alguma maneira difícil de entender, essa visão consegue coexistir com a de Roma como império iluminado, o maior do mundo, fonte de leis e cultura, de altas realizações na engenharia, e que vivia se protegendo dos bárbaros que, esses sim, eram realmente maus.
Resolver essa esquizofrenia cultural seria assunto para mais de um livro, especialmente porque as duas visões vêm da própria época romana: como hoje existem pessoas que acham que o Brasil está se tornando uma potência e as que pensam que ele está perdido, que a geração de hoje não tem moralidade, a família tradicional está desaparecendo e há bandidos em cada canto (etc etc etc), alguns romanos achavam que estava tudo bem com o império enquanto outros viam problemas por todos os lados e louvavam os bons velhos tempos em que Roma supostamente era simples e virtuosa.
Mas voltemos a Nero. Como é que sabemos que ele era desse ou daquele jeito, que fez essas ou aquelas coisas? Como podemos saber qualquer coisa a respeito dele? Eis o problema básico da atividade de historiador.
Via de regra, não usamos laboratórios (os arqueólogos podem usar laboratórios para datar materiais, mas essa é praticamente a única exceção). Não temos como fazer experimentos que recriem o passado, colocando algumas pessoas dentro da reconstrução de uma casa romana e fazendo um reality show a respeito (seria uma experiência exótica e talvez desse audiência, mas não aprenderíamos nada sobre a vida romana). Não temos como entrevistar Nero, seus amigos, subordinados, inimigos, nem ninguém que tenha vivido na metade do século 1, a menos que algum médium prestativo se disponha a fazer uma contribuição à ciência.
O que fazemos é agir um pouco como Sherlock Holmes: ele também não podia reconstruir o passado para fazer suas investigações. Ao invés disso, ele juntava pistas - os vestígios que o passado deixou (relatos das testemunhas, pegadas, a arma do crime...) - e com elas formulava teorias para responder a questão que estava investigando. Como Sherlock era um gênio com uma capacidade de observação impressionante, e ainda por cima tinha a vantagem injusta de ser o protagonista, quase sempre chegava à conclusão certa e descobria quem estava quebrando bustos de Napoleão, quem roubou o cavalo Estrela de Prata ou o que significava o ritual Musgrave.
O método do historiador é mais ou menos o mesmo: fazer uma pergunta, juntar as evidências, interpretá-las de uma forma que faça sentido. Infelizmente, enquanto Sherlock podia provar definitivamente que estava certo encontrando o cavalo desaparecido, ou capturando o assassino e ouvindo sua confissão, nem toda pergunta histórica tem uma prova tão conclusiva - é raro alguém encontrar o equivalente a um diário de Nero contando todas as suas preparações para incendiar a capital. Na falta de uma solução definitiva, os historiadores passam boa parte do tempo discutindo interpretações, se tal evidência é confiável ou não, qual de dois depoimentos contraditórios está correto - algo como os desembargadores em um tribunal.
(Apenas para constar, as comparações com Sherlock Holmes ou com juízes não são inéditas. São da autoria de Carlo Ginzburg, um dos maiores historiadores vivos.)
Então, quais são as pistas que temos sobre Nero? Não muitas; moedas do seu reinado, ou os vestígios do seu palácio, podem ajudar a compreender a situação de Roma sob seu governo, mas não nos dizem muito sobre o indivíduo. Para compreendê-lo, precisamos nos voltar para os textos, e esses também são poucos. A maior parte do que se escreveu na época, como em qualquer período antes da imprensa, está perdido - como todos os livros da época eram manuscritos, a sobrevivência de um livro qualquer através das gerações dependia de pelo menos uma das poucas cópias parar nas mãos de alguém disposto a preservar seu manuscrito e fazer uma nova cópia se necessário. A surpresa, nessas condições, não é que tenhamos perdido quase tudo, mas que alguns textos tenham sido preservados.
Infelizmente, não temos muito acesso ao que os contemporâneos de Nero pensavam dele. Algumas menções passageiras sobreviveram, mas nenhum relato detalhado. Para encontrar os primeiros relatos, precisamos avançar no tempo até várias décadas após a morte do imperador, quando surgem as principais fontes do que podemos saber sobre ele: as Vidas dos doze césares, de Suetônio, e os Anais e Histórias de Tácito, escritos no começo do século 2.
Em tese, encontramos nossas pistas, e bastaria juntar o que dizem para podermos saber que tipo de pessoa foi Nero. Uma leitura rápida das fontes mostra que concordam no básico: o governo de Nero começou bem mas logo tornou-se tirânico, com direito a montes de execuções, Roma pegou fogo, ele começou a perseguir os cristãos, e eventualmente se tornou tão odiado que alguns dos principais generais resolveram derrubá-lo e, para escapar à captura, Nero cometeu suicídio. Apenas para complicar os pobres romanos, cada general agiu separadamente em busca do poder, causando uma guerra civil após a morte de Nero, e ainda hoje 69 é conhecido como o Ano dos Quatro Imperadores, em referência aos breves reinados de Galba, Oto, Vitélio e o início do reinado de Vespasiano.
Mas o diabo está nos detalhes. Primeiro problema: é discutível até que ponto podemos confiar nas fontes. Ambos escreveram quase cinquenta anos depois da morte de Nero, quando a coleta de informações era mais difícil. As Vidas de Suetônio são especialmente problemáticas: ele gostava de falar das intrigas familiares, das anedotas picantes e de fatos sensacionalistas que tornam seu livro o equivalente antigo a um tabloide - foi ele, por exemplo, quem disse que Calígula planejava tornar seu cavalo cônsul. Tácito é considerado um historiador mais confiável, mas parte de seu relato sobre Nero está perdido. Ainda por cima, os dois, mas principalmente Tácito, não eram grandes fãs do regime imperial, preferindo a tradição republicana associada aos senadores.
Até agora, temos relatos escritos mais tarde do que o desejado, e por autores que tinham seus motivos para, na dúvida, falar mal de um imperador. Outro problema, agora mais sério: eles não concordam em tudo. Suetônio diz que Nero foi o responsável pelo incêndio de Roma, e enquanto assistia a destruição do alto de uma torre cantou uma música sobre o saque de Troia (Vida de Nero, c. 38). Mas Tácito conta uma história completamente diferente: Nero nem estava em Roma quando começou o incêndio, e ao voltar construiu abrigos para os sem-teto, inclusive em suas próprias terras, e trouxe suprimentos de comida a preços baixos - medidas de relações públicas que teriam fracassado graças ao rumor de que, durante o incêndio, ele teria cantado sobre a destruição de Troia em um palco particular (Anais, 15, 39). Não é preciso muito esforço mental para deduzir que pelo menos uma dessas narrativas está errada. Apesar de o Nero piromaníaco de Suetônio ser o preferido no imaginário das pessoas, a versão de Tácito tem um ponto forte a seu favor: Tácito detestava Nero, e faz longas listas das barbaridades que ele cometeu. Se Tácito pudesse ter atribuído o incêndio de Roma a Nero com alguma credibilidade, provavelmente teria feito exatamente isso.
Outras questões também são difíceis de resolver. Suetônio e Tácito concordam que Nero perseguiu os cristãos - Suetônio fala deles como "adeptos de uma superstição nova e maléfica", e Tácito diz que serviram como bodes expiatórios pelo incêndio de Roma, para que Nero pudesse recuperar sua credibilidade. Nenhuma menção a cristãos específicos, como Pedro e Paulo, e a Bíblia também não nos diz nada sobre seus supostos martírios em Roma. Os martírios só são mencionados em documentos ainda posteriores, como a História Eclesiástica de Eusébio de Cesareia, do início do século 4:
"Foi também ele [Nero], o primeiro de todos os figadais inimigos de Deus, que teve a presunção de matar os apóstolos. Com efeito, conta-se que sob seu reinado Paulo foi decapitado em Roma. E ali igualmente Pedro foi crucificado. Confirmam tal asserção os nomes de Pedro e de Paulo, até hoje atribuídos aos cemitérios da cidade" (História Eclesiástica, livro 2, 25, 5).
Podemos afirmar confiantemente que Nero perseguiu cristãos, mas como ter certeza desses dois em particular? Eusébio e outros autores cristãos estariam relatando uma tradição autêntica, ou os cristãos de Roma teriam associado a sua cidade a dois dos maiores líderes cristãos, com todo o prestígio que essa associação traz ainda hoje, sem grandes evidências?
Finalmente, é discutível se Nero era mesmo universalmente odiado. Suetônio termina sua Vida dizendo que algumas pessoas colocavam flores em seu túmulo, e havia mesmo pessoas que se faziam passar por Nero, com algum sucesso. Tácito diz que a "porção respeitável" da sociedade alegrou-se com sua morte, mas não a "população degradada" (Histórias, 1, 4). Vindo de um romano da elite, isso não leva a crer que o imperador era detestado pela elite, mas não pela população em geral?
É por incertezas assim que questões como "o verdadeiro Nero" são discutidas há tempo e continuarão sendo: infelizmente, nosso conhecimento tem limites e em alguns casos só podemos dizer o que é mais ou menos provável. O que exatamente ele fez, ou como conciliar toda sua violência com o respeito que os pobres aparentemente tinham por ele, são quebra-cabeças com várias peças faltando.
Mas continuo achando que ele não teve nada a ver com o incêndio.
1 - ele era maaaaau e bandido;
2 - de tão mau, colocou fogo em Roma. De tão bandido, tocou lira e cantou durante o incêndio;
3 - de tão mau, perseguiu cristãos. De tão bandido, matou os apóstolos Pedro e Paulo.
Existem outros fatozinhos mais ou menos conhecidos - ele matou também a própria mãe, se considerava um artista, a população celebrou a sua morte - e todos contribuem para formar a imagem de um vilão insano, digno de filmes de James Bond.
Em outras palavras, Nero se tornou praticamente um símbolo perfeito de uma das concepções que as pessoas fazem de Roma: a de um império moralmente corrompido, entregue a orgias, com uma sucessão de tiranos homicidas no governo, que passavam seus dias entre as festas e atirar os cristãos aos leões. De alguma maneira difícil de entender, essa visão consegue coexistir com a de Roma como império iluminado, o maior do mundo, fonte de leis e cultura, de altas realizações na engenharia, e que vivia se protegendo dos bárbaros que, esses sim, eram realmente maus.
Resolver essa esquizofrenia cultural seria assunto para mais de um livro, especialmente porque as duas visões vêm da própria época romana: como hoje existem pessoas que acham que o Brasil está se tornando uma potência e as que pensam que ele está perdido, que a geração de hoje não tem moralidade, a família tradicional está desaparecendo e há bandidos em cada canto (etc etc etc), alguns romanos achavam que estava tudo bem com o império enquanto outros viam problemas por todos os lados e louvavam os bons velhos tempos em que Roma supostamente era simples e virtuosa.
Mas voltemos a Nero. Como é que sabemos que ele era desse ou daquele jeito, que fez essas ou aquelas coisas? Como podemos saber qualquer coisa a respeito dele? Eis o problema básico da atividade de historiador.
Via de regra, não usamos laboratórios (os arqueólogos podem usar laboratórios para datar materiais, mas essa é praticamente a única exceção). Não temos como fazer experimentos que recriem o passado, colocando algumas pessoas dentro da reconstrução de uma casa romana e fazendo um reality show a respeito (seria uma experiência exótica e talvez desse audiência, mas não aprenderíamos nada sobre a vida romana). Não temos como entrevistar Nero, seus amigos, subordinados, inimigos, nem ninguém que tenha vivido na metade do século 1, a menos que algum médium prestativo se disponha a fazer uma contribuição à ciência.
O que fazemos é agir um pouco como Sherlock Holmes: ele também não podia reconstruir o passado para fazer suas investigações. Ao invés disso, ele juntava pistas - os vestígios que o passado deixou (relatos das testemunhas, pegadas, a arma do crime...) - e com elas formulava teorias para responder a questão que estava investigando. Como Sherlock era um gênio com uma capacidade de observação impressionante, e ainda por cima tinha a vantagem injusta de ser o protagonista, quase sempre chegava à conclusão certa e descobria quem estava quebrando bustos de Napoleão, quem roubou o cavalo Estrela de Prata ou o que significava o ritual Musgrave.
O método do historiador é mais ou menos o mesmo: fazer uma pergunta, juntar as evidências, interpretá-las de uma forma que faça sentido. Infelizmente, enquanto Sherlock podia provar definitivamente que estava certo encontrando o cavalo desaparecido, ou capturando o assassino e ouvindo sua confissão, nem toda pergunta histórica tem uma prova tão conclusiva - é raro alguém encontrar o equivalente a um diário de Nero contando todas as suas preparações para incendiar a capital. Na falta de uma solução definitiva, os historiadores passam boa parte do tempo discutindo interpretações, se tal evidência é confiável ou não, qual de dois depoimentos contraditórios está correto - algo como os desembargadores em um tribunal.
(Apenas para constar, as comparações com Sherlock Holmes ou com juízes não são inéditas. São da autoria de Carlo Ginzburg, um dos maiores historiadores vivos.)
Então, quais são as pistas que temos sobre Nero? Não muitas; moedas do seu reinado, ou os vestígios do seu palácio, podem ajudar a compreender a situação de Roma sob seu governo, mas não nos dizem muito sobre o indivíduo. Para compreendê-lo, precisamos nos voltar para os textos, e esses também são poucos. A maior parte do que se escreveu na época, como em qualquer período antes da imprensa, está perdido - como todos os livros da época eram manuscritos, a sobrevivência de um livro qualquer através das gerações dependia de pelo menos uma das poucas cópias parar nas mãos de alguém disposto a preservar seu manuscrito e fazer uma nova cópia se necessário. A surpresa, nessas condições, não é que tenhamos perdido quase tudo, mas que alguns textos tenham sido preservados.
Infelizmente, não temos muito acesso ao que os contemporâneos de Nero pensavam dele. Algumas menções passageiras sobreviveram, mas nenhum relato detalhado. Para encontrar os primeiros relatos, precisamos avançar no tempo até várias décadas após a morte do imperador, quando surgem as principais fontes do que podemos saber sobre ele: as Vidas dos doze césares, de Suetônio, e os Anais e Histórias de Tácito, escritos no começo do século 2.
Em tese, encontramos nossas pistas, e bastaria juntar o que dizem para podermos saber que tipo de pessoa foi Nero. Uma leitura rápida das fontes mostra que concordam no básico: o governo de Nero começou bem mas logo tornou-se tirânico, com direito a montes de execuções, Roma pegou fogo, ele começou a perseguir os cristãos, e eventualmente se tornou tão odiado que alguns dos principais generais resolveram derrubá-lo e, para escapar à captura, Nero cometeu suicídio. Apenas para complicar os pobres romanos, cada general agiu separadamente em busca do poder, causando uma guerra civil após a morte de Nero, e ainda hoje 69 é conhecido como o Ano dos Quatro Imperadores, em referência aos breves reinados de Galba, Oto, Vitélio e o início do reinado de Vespasiano.
Mas o diabo está nos detalhes. Primeiro problema: é discutível até que ponto podemos confiar nas fontes. Ambos escreveram quase cinquenta anos depois da morte de Nero, quando a coleta de informações era mais difícil. As Vidas de Suetônio são especialmente problemáticas: ele gostava de falar das intrigas familiares, das anedotas picantes e de fatos sensacionalistas que tornam seu livro o equivalente antigo a um tabloide - foi ele, por exemplo, quem disse que Calígula planejava tornar seu cavalo cônsul. Tácito é considerado um historiador mais confiável, mas parte de seu relato sobre Nero está perdido. Ainda por cima, os dois, mas principalmente Tácito, não eram grandes fãs do regime imperial, preferindo a tradição republicana associada aos senadores.
Até agora, temos relatos escritos mais tarde do que o desejado, e por autores que tinham seus motivos para, na dúvida, falar mal de um imperador. Outro problema, agora mais sério: eles não concordam em tudo. Suetônio diz que Nero foi o responsável pelo incêndio de Roma, e enquanto assistia a destruição do alto de uma torre cantou uma música sobre o saque de Troia (Vida de Nero, c. 38). Mas Tácito conta uma história completamente diferente: Nero nem estava em Roma quando começou o incêndio, e ao voltar construiu abrigos para os sem-teto, inclusive em suas próprias terras, e trouxe suprimentos de comida a preços baixos - medidas de relações públicas que teriam fracassado graças ao rumor de que, durante o incêndio, ele teria cantado sobre a destruição de Troia em um palco particular (Anais, 15, 39). Não é preciso muito esforço mental para deduzir que pelo menos uma dessas narrativas está errada. Apesar de o Nero piromaníaco de Suetônio ser o preferido no imaginário das pessoas, a versão de Tácito tem um ponto forte a seu favor: Tácito detestava Nero, e faz longas listas das barbaridades que ele cometeu. Se Tácito pudesse ter atribuído o incêndio de Roma a Nero com alguma credibilidade, provavelmente teria feito exatamente isso.
Outras questões também são difíceis de resolver. Suetônio e Tácito concordam que Nero perseguiu os cristãos - Suetônio fala deles como "adeptos de uma superstição nova e maléfica", e Tácito diz que serviram como bodes expiatórios pelo incêndio de Roma, para que Nero pudesse recuperar sua credibilidade. Nenhuma menção a cristãos específicos, como Pedro e Paulo, e a Bíblia também não nos diz nada sobre seus supostos martírios em Roma. Os martírios só são mencionados em documentos ainda posteriores, como a História Eclesiástica de Eusébio de Cesareia, do início do século 4:
"Foi também ele [Nero], o primeiro de todos os figadais inimigos de Deus, que teve a presunção de matar os apóstolos. Com efeito, conta-se que sob seu reinado Paulo foi decapitado em Roma. E ali igualmente Pedro foi crucificado. Confirmam tal asserção os nomes de Pedro e de Paulo, até hoje atribuídos aos cemitérios da cidade" (História Eclesiástica, livro 2, 25, 5).
Podemos afirmar confiantemente que Nero perseguiu cristãos, mas como ter certeza desses dois em particular? Eusébio e outros autores cristãos estariam relatando uma tradição autêntica, ou os cristãos de Roma teriam associado a sua cidade a dois dos maiores líderes cristãos, com todo o prestígio que essa associação traz ainda hoje, sem grandes evidências?
Finalmente, é discutível se Nero era mesmo universalmente odiado. Suetônio termina sua Vida dizendo que algumas pessoas colocavam flores em seu túmulo, e havia mesmo pessoas que se faziam passar por Nero, com algum sucesso. Tácito diz que a "porção respeitável" da sociedade alegrou-se com sua morte, mas não a "população degradada" (Histórias, 1, 4). Vindo de um romano da elite, isso não leva a crer que o imperador era detestado pela elite, mas não pela população em geral?
É por incertezas assim que questões como "o verdadeiro Nero" são discutidas há tempo e continuarão sendo: infelizmente, nosso conhecimento tem limites e em alguns casos só podemos dizer o que é mais ou menos provável. O que exatamente ele fez, ou como conciliar toda sua violência com o respeito que os pobres aparentemente tinham por ele, são quebra-cabeças com várias peças faltando.
Mas continuo achando que ele não teve nada a ver com o incêndio.
dezembro 01, 2010
3. Flintstones e sapatos
Como quase todos os brasileiros que cresceram nas últimas décadas com acesso a uma televisão, assisti a muitos e muitos episódios de Flintstones quando criança. No meu tempo, os desenhos da safra antiga já precisavam dividir espaço com material mais novo (Thundercats, Caverna do Dragão, Tiny Toons...), mas continuavam ali, firmes. Se pudesse somar tudo, devo ter passado vários dias de vida na companhia do pessoal de Bedrock.
Hoje, parei para pensar a respeito e fiquei preocupado com uma ideia que surgiu: será que, em algum lugar do planeta, alguma (ou algumas? muitas?) daquelas crianças que cresceram com os Flintstones não se tornou um adulto que ainda acha que aquilo é de verdade? Que as pessoas da pré-história viviam como americanos dos anos 60 COM DINOSSAUROS?
Talvez seja um simples caso de cinismo exagerado e essas pessoas não existam de verdade. Tomara. Mas ainda acho que elas estão à solta, no meio de nós, e passamos por elas na rua todos os dias. Em seu mundinho que descende de carros de pedra, dinossauros-guindastes, dinossauros de estimação e crianças que brincam com tacapes.
Se elas realmente existem, é claro que a culpa não seria dos criadores do desenho. Querer responsabilizar alguém por fazer uma história de faz de conta para divertir crianças? Por favor! Se devemos procurar culpados por um fenômeno talvez inexistente, são aqueles que nunca dizem às crianças - nem aos adolescentes e adultos... - que devem questionar o que veem. Que nem tudo é o que parece ser. Em seis palavras: gente que nunca ensina senso crítico.
Pela minha experiência pessoal, a escola não está fazendo sua parte nisso. Com raríssimas exceções, a ideia de "senso crítico" dos meus professores não era ensinar a pensar e dar as ferramentas para que chegássemos às nossas próprias conclusões. Longe disso, o senso crítico que eles passavam significava um esquerdismo vulgar, um antiamericanismo mais vulgar ainda e um marxismo tão vagabundo que ainda hoje deve estar rodando a bolsa em alguma esquina. Que nunca eram sujeitos a críticas, claro.
(Existem versões mais inteligentes dessas ideologias, mas os alunos certamente não tinham contato com elas. Não tenho muita certeza quanto aos professores.)
Mas não faz sentido responsabilizar Fred Flintstone pelos problemas educacionais do Brasil. Ele era só um americano comum levando a vida numa cidade pré-histórica.
Aliás, os Flintstones sofriam de pelo menos três anacronismos gritantes para pessoas pré-históricas: primeiro, como disse antes, eles eram social, cultural, até tecnologicamente, americanos do século 20. Tente encontrar um bando de caçadores-coletores com jornada de trabalho pré-determinada, ou com o homem saindo para trabalhar e a mulher cuidando do lar, tente!
(Generalizando, os caçadores-coletores dividem o trabalho sexualmente. Os homens caçam, as mulheres colhem.)
Segundo, os malditos dinossauros, que estavam extintos milhões de anos antes que algum ser humano tivesse a ideia de bater duas pedras para ver o que acontecia.
(E provavelmente se cortou. Fazer instrumentos de pedra é mais difícil do que parece!)
O terceiro problema são justamente as pedras. É uma brincadeira do desenho que os personagens tivessem nomes que lembrassem pedra (sr. Pedregulho, Pedrita, Fred Flintstone, Barney Rubble...) e que quase tudo ao seu redor fosse feito de pedra. Carros de pedra, jornais de pedra, casas de pedra... certo, porque eles viviam na idade da pedra. Ou não?
Na verdade, Idade da Pedra é um desses nomes que se popularizaram e provavelmente vão entulhar nosso vocabulário para todo o sempre, mas que não faz tanto sentido assim. O termo surgiu porque praticamente só o que os arqueólogos do século 19 encontraram para períodos antes da descoberta dos metais eram ferramentas de pedra. E objetos de cerâmica nos milênios mais recentes, mas principalmente pedra: machados de pedra, foices de pedra, agulhas de pedra, estátuas de pedra...
Como não tinham outro material para analisar, pareceu que a pedra era a supertecnologia da pré-história, e o nome pegou, com duas divisões para os especialistas - Idade da Pedra Lascada, ou Paleolítico, e Idade da Pedra Polida, ou Neolítico (cuja verdadeira grande inovação não foram instrumentos de pedra melhores, mas a agricultura e todas as suas consequências). Acho que Idade da Cerâmica teria soado melhor que Neolítico, mas agora é tarde.
Só que o motivo de não acharem outros materiais não é que eles não existissem. A dependência dos Flintstones por pedras não faria sentido para nenhum bando pré-histórico que se prezasse. Eles usavam uma variedade de outros materiais no dia-a-dia, como madeira - nossos primos chimpanzés também sabem usar ferramentas de madeira, como varetas para pegar cupins, então o princípio básico não estava acima da capacidade dos nossos ancestrais. Mas como a madeira - e a grama, o couro, os tecidos - é perecível e dificilmente se encontram ferramentas antigas desse material, ela perdeu a batalha da nomenclatura. Idade da Madeira também soa bem.
É por essa escassez que cada descoberta de um objeto antigo feito de material perecível é valiosa. Uma das grandes descobertas arqueológicas recentes foi desse tipo: o sapato mais antigo que conhecemos, com cerca de 5500 anos de idade, achado em uma caverna na Armênia. Um pé direito, de couro, aproximadamente tamanho 35.
Os detalhes técnicos sobre a descoberta podem ser encontrados aqui (em inglês). É o calçado mais antigo conhecido na Eurásia, apesar de existirem sandálias e calçados abertos americanos anteriores. E, em tese, descobertas bem mais antigas seriam possíveis, porque o artigo mostra indícios de que a humanidade usa calçados há mais de 20 mil anos. Faz esse inocente sapato parecer recente, apesar de ser muito mais antigo que a escrita, os primeiros Estados, as pirâmides... e, porque não dizer, mais antigo que os Flintstones também.
Hoje, parei para pensar a respeito e fiquei preocupado com uma ideia que surgiu: será que, em algum lugar do planeta, alguma (ou algumas? muitas?) daquelas crianças que cresceram com os Flintstones não se tornou um adulto que ainda acha que aquilo é de verdade? Que as pessoas da pré-história viviam como americanos dos anos 60 COM DINOSSAUROS?
Talvez seja um simples caso de cinismo exagerado e essas pessoas não existam de verdade. Tomara. Mas ainda acho que elas estão à solta, no meio de nós, e passamos por elas na rua todos os dias. Em seu mundinho que descende de carros de pedra, dinossauros-guindastes, dinossauros de estimação e crianças que brincam com tacapes.
Se elas realmente existem, é claro que a culpa não seria dos criadores do desenho. Querer responsabilizar alguém por fazer uma história de faz de conta para divertir crianças? Por favor! Se devemos procurar culpados por um fenômeno talvez inexistente, são aqueles que nunca dizem às crianças - nem aos adolescentes e adultos... - que devem questionar o que veem. Que nem tudo é o que parece ser. Em seis palavras: gente que nunca ensina senso crítico.
Pela minha experiência pessoal, a escola não está fazendo sua parte nisso. Com raríssimas exceções, a ideia de "senso crítico" dos meus professores não era ensinar a pensar e dar as ferramentas para que chegássemos às nossas próprias conclusões. Longe disso, o senso crítico que eles passavam significava um esquerdismo vulgar, um antiamericanismo mais vulgar ainda e um marxismo tão vagabundo que ainda hoje deve estar rodando a bolsa em alguma esquina. Que nunca eram sujeitos a críticas, claro.
(Existem versões mais inteligentes dessas ideologias, mas os alunos certamente não tinham contato com elas. Não tenho muita certeza quanto aos professores.)
Mas não faz sentido responsabilizar Fred Flintstone pelos problemas educacionais do Brasil. Ele era só um americano comum levando a vida numa cidade pré-histórica.
Aliás, os Flintstones sofriam de pelo menos três anacronismos gritantes para pessoas pré-históricas: primeiro, como disse antes, eles eram social, cultural, até tecnologicamente, americanos do século 20. Tente encontrar um bando de caçadores-coletores com jornada de trabalho pré-determinada, ou com o homem saindo para trabalhar e a mulher cuidando do lar, tente!
(Generalizando, os caçadores-coletores dividem o trabalho sexualmente. Os homens caçam, as mulheres colhem.)
Segundo, os malditos dinossauros, que estavam extintos milhões de anos antes que algum ser humano tivesse a ideia de bater duas pedras para ver o que acontecia.
(E provavelmente se cortou. Fazer instrumentos de pedra é mais difícil do que parece!)
O terceiro problema são justamente as pedras. É uma brincadeira do desenho que os personagens tivessem nomes que lembrassem pedra (sr. Pedregulho, Pedrita, Fred Flintstone, Barney Rubble...) e que quase tudo ao seu redor fosse feito de pedra. Carros de pedra, jornais de pedra, casas de pedra... certo, porque eles viviam na idade da pedra. Ou não?
Na verdade, Idade da Pedra é um desses nomes que se popularizaram e provavelmente vão entulhar nosso vocabulário para todo o sempre, mas que não faz tanto sentido assim. O termo surgiu porque praticamente só o que os arqueólogos do século 19 encontraram para períodos antes da descoberta dos metais eram ferramentas de pedra. E objetos de cerâmica nos milênios mais recentes, mas principalmente pedra: machados de pedra, foices de pedra, agulhas de pedra, estátuas de pedra...
Como não tinham outro material para analisar, pareceu que a pedra era a supertecnologia da pré-história, e o nome pegou, com duas divisões para os especialistas - Idade da Pedra Lascada, ou Paleolítico, e Idade da Pedra Polida, ou Neolítico (cuja verdadeira grande inovação não foram instrumentos de pedra melhores, mas a agricultura e todas as suas consequências). Acho que Idade da Cerâmica teria soado melhor que Neolítico, mas agora é tarde.
Só que o motivo de não acharem outros materiais não é que eles não existissem. A dependência dos Flintstones por pedras não faria sentido para nenhum bando pré-histórico que se prezasse. Eles usavam uma variedade de outros materiais no dia-a-dia, como madeira - nossos primos chimpanzés também sabem usar ferramentas de madeira, como varetas para pegar cupins, então o princípio básico não estava acima da capacidade dos nossos ancestrais. Mas como a madeira - e a grama, o couro, os tecidos - é perecível e dificilmente se encontram ferramentas antigas desse material, ela perdeu a batalha da nomenclatura. Idade da Madeira também soa bem.
É por essa escassez que cada descoberta de um objeto antigo feito de material perecível é valiosa. Uma das grandes descobertas arqueológicas recentes foi desse tipo: o sapato mais antigo que conhecemos, com cerca de 5500 anos de idade, achado em uma caverna na Armênia. Um pé direito, de couro, aproximadamente tamanho 35.
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A última moda na Armênia há 5500 anos atrás. O enchimento de palha mantinha a forma do sapato. |
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O local da descoberta, perto da fronteira com o Azerbaijão. |
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O interior da caverna. O quadriculado é uma técnica arqueológica para mapear as escavações. |
novembro 28, 2010
2. O mito da Terra plana
Os historiadores têm um grave problema: pesquisam, discutem e reinterpretam tudo, mas não conseguem fazer os resultados disso circular pela sociedade. As últimas descobertas médicas, pelo menos as de aplicação prática, circulam sem controle, tanto que as pessoas já perceberam que a medicina, como qualquer ciência, só chega a conclusões provisórias, que podem ser rediscutidas quando surgem novas evidências - é o caso da eterna questão de saber se o café ou o chocolate fazem bem ou mal. As descobertas das ciências exatas, embora seus conteúdos não sejam tão divulgados por serem quase incompreensíveis aos leigos, têm consequências visíveis na forma de novas tecnologias.
Mas o nosso departamento de divulgação é um fracasso completo. As pessoas são bombardeadas com anos de aulas de história nos colégios, veem filmes, programas de tv, revistas, romances históricos, enfim, são expostas ao assunto o tempo todo... e praticamente tudo que acham que aprenderam a respeito está obsoleto.
Quem mais sofre com isso são os medievalistas. Por todo o século passado, eles destruíram a visão da Idade Média como um milênio de trevas, ignorância, tirania papal e tudo o mais. Criaram uma nova imagem, de um período que teve seus problemas, como qualquer outro, mas não foi especialmente ruim. É uma pena que tenham esquecido de avisar o resto do mundo.
Um dos mitos persistentes sobre a Europa medieval é o da Terra plana. Todos já ouviram falar que as pessoas, nessa época, pensavam que o planeta era achatado, que era possível cair da beira do mundo, e que esse era um dos medos que os marinheiros tinham durante as grandes navegações. Alguns também devem ter ouvido falar que Cristóvão Colombo era um dos poucos seres pensantes que perceberam que o mundo era redondo, e para conseguir financiamento para suas viagens precisou debater com os doutores da universidade de Salamanca, que não ficaram muito convencidos dessas heresias.
Não é uma história bonitinha? O herói solitário, armado apenas com a verdade, lutando contra os dogmas da ignorância... seria bonitinho mesmo, se tivesse acontecido. O problema é que nunca aconteceu.
Colombo realmente enfrentou os doutores de Salamanca em discussões, mas todos os envolvidos, como todo mundo na Europa do final do século 15, sabiam que a Terra era redonda. O debate era em torno do seu tamanho: Colombo pensava que a Terra era bem menor do que na realidade, e por isso seria possível chegar à Ásia através do Atlântico. Os doutores sabiam do tamanho aproximado da Terra, e por isso achavam que a expedição de Colombo era suicida. E eles estariam certos, se não fosse um pequeno detalhe que os dois lados desconheciam: a América.
Desde que Aristóteles, no século 4 a.C., demonstrou que o mundo é esférico, as pessoas não esqueceram disso. Os medievalistas devem poder apontar pilhas de documentos que mostram como o conhecimento se manteve; eu sei de pelo menos dois.
No começo do século 14 (ou seja, quase 200 anos antes de Colombo), Dante já sabia o formato do mundo. Na Divina Comédia, ele colocou seu inferno no interior da Terra, de tal forma que ele entra por um lugar e sai no extremo oposto do mundo, depois de ter passado pelo seu centro, onde o próprio Satã punia os traidores - os três maiores deles, na verdade: Judas (o que não surpreende ninguém) e Brutus e Cássio, os assassinos de César, o que pode ser uma surpresa para quem pensa que o conhecimento da antiguidade se perdeu na Idade Média.
E antes de Dante, na metade do século 13, Tomás de Aquino, como bom aristotélico que era, escreveu em sua Suma Teológica (parte I, questão 1, artigo 1):
As ciências são diferenciadas pelos diversos meios através dos quais o conhecimento é obtido. Pois o astrônomo e o filósofo natural [físico] podem ambos demonstrar a mesma conclusão: por exemplo, que a Terra é redonda, o astrônomo por meios matemáticos (abstraindo da matéria) e o filósofo natural através da própria matéria.
Vejam que ele toma isso como tão evidente que não se sente na obrigação de dizer quais os argumentos do astrônomo e do físico - por que fazer isso, se ele só dizia o que todos já sabiam?
Para quem quiser uma discussão mais aprofundada, inclusive sobre a questão de Colombo, fica uma sugestão de leitura: Os sete mitos da conquista espanhola, de Matthew Restall, que trata dessa e outras invencionices que deveriam sair do nosso imaginário.
Mas o nosso departamento de divulgação é um fracasso completo. As pessoas são bombardeadas com anos de aulas de história nos colégios, veem filmes, programas de tv, revistas, romances históricos, enfim, são expostas ao assunto o tempo todo... e praticamente tudo que acham que aprenderam a respeito está obsoleto.
Quem mais sofre com isso são os medievalistas. Por todo o século passado, eles destruíram a visão da Idade Média como um milênio de trevas, ignorância, tirania papal e tudo o mais. Criaram uma nova imagem, de um período que teve seus problemas, como qualquer outro, mas não foi especialmente ruim. É uma pena que tenham esquecido de avisar o resto do mundo.
Um dos mitos persistentes sobre a Europa medieval é o da Terra plana. Todos já ouviram falar que as pessoas, nessa época, pensavam que o planeta era achatado, que era possível cair da beira do mundo, e que esse era um dos medos que os marinheiros tinham durante as grandes navegações. Alguns também devem ter ouvido falar que Cristóvão Colombo era um dos poucos seres pensantes que perceberam que o mundo era redondo, e para conseguir financiamento para suas viagens precisou debater com os doutores da universidade de Salamanca, que não ficaram muito convencidos dessas heresias.
Não é uma história bonitinha? O herói solitário, armado apenas com a verdade, lutando contra os dogmas da ignorância... seria bonitinho mesmo, se tivesse acontecido. O problema é que nunca aconteceu.
Colombo realmente enfrentou os doutores de Salamanca em discussões, mas todos os envolvidos, como todo mundo na Europa do final do século 15, sabiam que a Terra era redonda. O debate era em torno do seu tamanho: Colombo pensava que a Terra era bem menor do que na realidade, e por isso seria possível chegar à Ásia através do Atlântico. Os doutores sabiam do tamanho aproximado da Terra, e por isso achavam que a expedição de Colombo era suicida. E eles estariam certos, se não fosse um pequeno detalhe que os dois lados desconheciam: a América.
Desde que Aristóteles, no século 4 a.C., demonstrou que o mundo é esférico, as pessoas não esqueceram disso. Os medievalistas devem poder apontar pilhas de documentos que mostram como o conhecimento se manteve; eu sei de pelo menos dois.
No começo do século 14 (ou seja, quase 200 anos antes de Colombo), Dante já sabia o formato do mundo. Na Divina Comédia, ele colocou seu inferno no interior da Terra, de tal forma que ele entra por um lugar e sai no extremo oposto do mundo, depois de ter passado pelo seu centro, onde o próprio Satã punia os traidores - os três maiores deles, na verdade: Judas (o que não surpreende ninguém) e Brutus e Cássio, os assassinos de César, o que pode ser uma surpresa para quem pensa que o conhecimento da antiguidade se perdeu na Idade Média.
E antes de Dante, na metade do século 13, Tomás de Aquino, como bom aristotélico que era, escreveu em sua Suma Teológica (parte I, questão 1, artigo 1):
As ciências são diferenciadas pelos diversos meios através dos quais o conhecimento é obtido. Pois o astrônomo e o filósofo natural [físico] podem ambos demonstrar a mesma conclusão: por exemplo, que a Terra é redonda, o astrônomo por meios matemáticos (abstraindo da matéria) e o filósofo natural através da própria matéria.
Vejam que ele toma isso como tão evidente que não se sente na obrigação de dizer quais os argumentos do astrônomo e do físico - por que fazer isso, se ele só dizia o que todos já sabiam?
Para quem quiser uma discussão mais aprofundada, inclusive sobre a questão de Colombo, fica uma sugestão de leitura: Os sete mitos da conquista espanhola, de Matthew Restall, que trata dessa e outras invencionices que deveriam sair do nosso imaginário.
novembro 27, 2010
1. Introdução
Levei algum tempo até decidir o que fazer no primeiro post. Uma apresentação pessoal? Um manifesto proclamando os objetivos deste blog? No final, achei que seria interessante começar com uma justificativa do que faço. Por sorte, tinha um texto engavetado tratando justamente disso. Aos eventuais leitores, aqui vai:
Em defesa da história
Circula pela Câmara dos Deputados um projeto de lei (no 3759/2004) buscando regular a profissão de historiador. Não é o primeiro projeto nesse sentido e, como ele está indo de uma gaveta a outra desde 2004, é de se pensar que os historiadores talvez não sejam uma prioridade para os representantes do povo. Isso poderia ser explicado pela falta de um lobby forte, mas existem outras profissões, já regulamentadas, que também não têm grande força política, como massagistas, instrutores de trânsito, repentistas e enólogos, entre outros. O mais provável é que, enquanto todos sabem a importância de um instrutor de trânsito, ninguém esteja muito seguro de por que, exatamente, termos historiadores à solta. Sem entrar no mérito do projeto mencionado, gostaria de tentar justificar nossa existência ao público.
O que fazem os historiadores, além de atormentar os alunos de colégio (ou, com uma frequência preocupante, de ser atormentados por eles)? Simplesmente o óbvio: aprofundar nosso conhecimento e compreensão da história e divulgá-lo. Mas de que adianta isso? Para que serve a história? Apesar de isso nem sempre ser dito aos alunos que tentam apenas decorar o conteúdo para passar no vestibular, ela serve para algumas coisas. Em primeiro lugar, ajuda a explicar o presente, fornecendo um contexto para as pequenas e grandes situações que vivemos. Por que o Brasil é um só país, enquanto a América espanhola se fragmentou em tantos pedaços? Por que os Estados Unidos se tornaram a principal potência mundial, enquanto o Brasil nunca conseguiu emplacar? Por que a maior parte dos brasileiros concilia um catolicismo nominal com crenças afrobrasileiras e espíritas que deixariam o papa de cabelo em pé? Por que você está lendo um texto escrito em letras derivadas dos fenícios, em um idioma derivado do latim que, ao longo do tempo, sofreu influências árabes e indígenas, entre outras? Eis uma função da história: dizer porque acabamos vivendo de uma certa maneira, e não de outra qualquer.
Apesar de isso ser importante, a história seria pouco mais do que umbigologia se não fosse além desse ponto, o que leva a uma segunda função: mostrar as outras maneiras de viver que foram adotadas ao longo do tempo, seja por nossos ancestrais ou por outros povos, e mostrar que essas variações da arte da vida possuem motivos para existir. Em outras palavras, explicar que não tem cabimento pensar que os povos do passado eram apenas estágios incompletos do desenvolvimento do que viriam a ser os brasileiros do século 21, mas que eram pessoas com valores próprios, vivendo em situações próprias e lidando com seus próprios problemas, assim como nós. Por exemplo, até poucas décadas atrás, a humanidade resolvia suas necessidades de comunicação sem internet e celulares, sem sentir falta desses recursos inexistentes. Se isso parece óbvio aos que viveram essa época, é algo que precisará ser explicado à próxima geração, que não conheceu nada diferente. É preciso explicar, da mesma forma, que nem todos os povos atuais vivem como os brasileiros, e que eles têm suas razões para agir como agem. Existem causas pelas quais os japoneses mantêm o sistema de escrita mais complexo do mundo, ao invés de se converterem ao nosso alfabeto; causas pelas quais os chineses mantêm um sistema político muito diferente da nossa democracia de “um voto a cada quatro anos”; causas pelas quais os muçulmanos não veem problemas em um homem ter várias mulheres, enquanto nós preferimos manter apenas uma pessoa por vez, ao menos oficialmente. Não que a nossa cultura seja a única com falhas e todas as demais sejam perfeitas. Mas, antes de querer mudar os outros, faz sentido perguntar-se: “afinal, o que os tornou diferentes?”. Um pouco de choque cultural às vezes faz bem.
Existe pelo menos mais uma função para a história e os historiadores, provavelmente a menos popular de todas, por ofender muitas sensibilidades: a de questionar mitos e certezas. O tempo todo, as pessoas legitimam seus comportamentos e suas identidades apelando ao passado: CTGs que preservam o “verdadeiro gaúcho”, políticos que fazem o que “nunca antes na história deste país” se viu, religiosos que baseiam sua visão de mundo e moralidade no que aconteceu na Palestina há dois mil anos atrás, e por aí vai. Os historiadores têm muito o que dizer sobre esses e outros usos do passado, do mesmo modo que os médicos deveriam ser consultados sobre supostos remédios milagrosos. E, se às vezes os remédios são realmente bons, no mais das vezes o seu único efeito é o placebo. As apropriações da história não são muito diferentes. Não que os historiadores queiram se comparar aos médicos, mas talvez o leitor venha a concordar que eles são, pelo menos, tão importantes quanto os repentistas.
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