novembro 28, 2010

2. O mito da Terra plana

Os historiadores têm um grave problema: pesquisam, discutem e reinterpretam tudo, mas não conseguem fazer os resultados disso circular pela sociedade. As últimas descobertas médicas, pelo menos as de aplicação prática, circulam sem controle, tanto que as pessoas já perceberam que a medicina, como qualquer ciência, só chega a conclusões provisórias, que podem ser rediscutidas quando surgem novas evidências - é o caso da eterna questão de saber se o café ou o chocolate fazem bem ou mal. As descobertas das ciências exatas, embora seus conteúdos não sejam tão divulgados por serem quase incompreensíveis aos leigos, têm consequências visíveis na forma de novas tecnologias.

Mas o nosso departamento de divulgação é um fracasso completo. As pessoas são bombardeadas com anos de aulas de história nos colégios, veem filmes, programas de tv, revistas, romances históricos, enfim, são expostas ao assunto o tempo todo... e praticamente tudo que acham que aprenderam a respeito está obsoleto.
Quem mais sofre com isso são os medievalistas. Por todo o século passado, eles destruíram a visão da Idade Média como um milênio de trevas, ignorância, tirania papal e tudo o mais. Criaram uma nova imagem, de um período que teve seus problemas, como qualquer outro, mas não foi especialmente ruim. É uma pena que tenham esquecido de avisar o resto do mundo.

Um dos mitos persistentes sobre a Europa medieval é o da Terra plana. Todos já ouviram falar que as pessoas, nessa época, pensavam que o planeta era achatado, que era possível cair da beira do mundo, e que esse era um dos medos que os marinheiros tinham durante as grandes navegações. Alguns também devem ter ouvido falar que Cristóvão Colombo era um dos poucos seres pensantes que perceberam que o mundo era redondo, e para conseguir financiamento para suas viagens precisou debater com os doutores da universidade de Salamanca, que não ficaram muito convencidos dessas heresias.

Não é uma história bonitinha? O herói solitário, armado apenas com a verdade, lutando contra os dogmas da ignorância... seria bonitinho mesmo, se tivesse acontecido. O problema é que nunca aconteceu.
Colombo realmente enfrentou os doutores de Salamanca em discussões, mas todos os envolvidos, como todo mundo na Europa do final do século 15, sabiam que a Terra era redonda. O debate era em torno do seu tamanho: Colombo pensava que a Terra era bem menor do que na realidade, e por isso seria possível chegar à Ásia através do Atlântico. Os doutores sabiam do tamanho aproximado da Terra, e por isso achavam que a expedição de Colombo era suicida. E eles estariam certos, se não fosse um pequeno detalhe que os dois lados desconheciam: a América.

Desde que Aristóteles, no século 4 a.C., demonstrou que o mundo é esférico, as pessoas não esqueceram disso. Os medievalistas devem poder apontar pilhas de documentos que mostram como o conhecimento se manteve; eu sei de pelo menos dois.
No começo do século 14 (ou seja, quase 200 anos antes de Colombo), Dante já sabia o formato do mundo. Na Divina Comédia, ele colocou seu inferno no interior da Terra, de tal forma que ele entra por um lugar e sai no extremo oposto do mundo, depois de ter passado pelo seu centro, onde o próprio Satã punia os traidores - os três maiores deles, na verdade: Judas (o que não surpreende ninguém) e Brutus e Cássio, os assassinos de César, o que pode ser uma surpresa para quem pensa que o conhecimento da antiguidade se perdeu na Idade Média.
E antes de Dante, na metade do século 13, Tomás de Aquino, como bom aristotélico que era, escreveu em sua Suma Teológica (parte I, questão 1, artigo 1):  
As ciências são diferenciadas pelos diversos meios através dos quais o conhecimento é obtido. Pois o astrônomo e o filósofo natural [físico] podem ambos demonstrar a mesma conclusão: por exemplo, que a Terra é redonda, o astrônomo por meios matemáticos (abstraindo da matéria) e o filósofo natural através da própria matéria.
Vejam que ele toma isso como tão evidente que não se sente na obrigação de dizer quais os argumentos do astrônomo e do físico - por que fazer isso, se ele só dizia o que todos já sabiam?

Para quem quiser uma discussão mais aprofundada, inclusive sobre a questão de Colombo, fica uma sugestão de leitura: Os sete mitos da conquista espanhola, de Matthew Restall, que trata dessa e outras invencionices que deveriam sair do nosso imaginário.

Um comentário:

  1. Sei que você está passando adiante o que ouviu falar ou o que escreveram. O problema é que muitas vezes acabamos passando adiante inverdades. Você já leu o livro “A History of the Life and Voyage of Christopher Columbus” do autor Washington Irving que o tal J. B. Russel (Inventing the Flat Earth) se baseou para criar o mito da terra plana? Não vou entrar em detalhes, mas no livro do Irving, embora muito fantasioso, o encontro de Cristóvão Colombo no Conselho de Salamanca, não tem qualquer referência sobre ser a terra plana. Existem discussões sobre ideias defendidas por Santo Agostinho e outros (patrísticos), como os tais antípodas, afirmando que a terra seria completamente coberta por água, salvo o hemisfério norte, ideia compactuada por Sacrobosco, em seu livro "A Esfera" que ainda era consultado na época do Colombo. Outra questão era sobre a zona tórrida, e etc. Parece que o inventor do mito da terra plana não foi o Washington Irving, mas o tal J. B. Russel. E somente para tentar justificar o injustificável. Realmente o cristianismo, para aqueles que conheciam a Bíblia em hebraico, acreditavam que a terra era plana, pois assim está escrito, mas graças ao trabalho inteligente dos comentadores católicos, absorvendo os ensinamentos dos gregos, a terra deixou de ser plana para ser esférica (não confundir esférico com circular).

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