No começo de 2003, a lei 10639 teve o efeito de um furacão entre os historiadores brasileiros: a partir daquele momento, era obrigatório o ensino de história da África e dos africanos. Uma iniciativa governamental bem intencionada, tendo em vista a importância dos africanos na formação do Brasil - o que, sem dúvida, era o que os legisladores tinham em mente. Se eles estivessem mais preocupados, quem sabe, com a importância que a África tem por si só, e achassem que o simples fato de existir uma história africana já é motivo para estudá-la, teriam tomado alguma medida adicional para preencher uma outra lacuna do nosso ensino e historiografia: uma pequena lacuna chamada Ásia...
Uma lei bem intencionada mas, como muitas coisas no Brasil, não tão bem planejada. Um mero canetaço não podia criar o ensino de história africana da noite para o dia, se não havia - com poucas, poucas exceções - pesquisadores na área, material em português, fosse acadêmico ou didático, e nem professores com conhecimento do assunto. Como os professores poderiam divulgar o que não tinham visto na universidade e não conseguiam encontrar nem nos livros didáticos nem em qualquer outro material?
Desnecessário dizer que nos anos seguintes houve uma corrida para superar essas falhas, e também desnecessário dizer que o processo continua em andamento. Acho que um dia teremos a história da África como um campo plenamente desenvolvido de ensino e pesquisa no Brasil, mas esse dia certamente ainda não chegou.
Acho também que a UNESCO concorda comigo, e é para colaborar nessa construção de um novo campo que disponibilizaram online a Coleção História Geral da África em português. Oito calhamaços gigantescos, ilustrados, escritos por especialistas, cobrindo desde a pré-história africana até o século 20.
A iniciativa é bem intencionada, e pelo que vi até agora a repercussão foi positiva: material de qualidade (e quantidade!) justamente sobre assuntos dos quais não se encontrava o que ler. Certamente, é melhor ter esses livros disponíveis gratuitamente para todos os interessados do que não tê-los, mas tenho algumas ressalvas. Acho que faltou um pouco de planejamento quanto a duas questões:
1 - a quantidade de material é imensa, vários milhares de páginas. Alguém realmente acredita que os professores de ensino fundamental e médio irão ler todo esse material apenas para dar uma ou duas aulas? Uma síntese de cem ou duzentas páginas teria mais consequências práticas do que os intimidadores oito volumes da UNESCO;
2 - a possível obsolescência dos textos, que foram publicados originalmente no início dos anos 80. Mesmo para a história, trinta anos são tempo suficiente para que muito do que está ali já tenha sido superado por pesquisas mais recentes. Não sou um grande conhecedor de história africana para testar essa hipótese, mas o primeiro volume incluiu alguns capítulos sobre um tema com o qual estou mais familiarizado: a origem da humanidade. Mesmo com um capítulo escrito por um dos maiores especialistas no assunto, Richard Leakey, o que o livro diz a respeito está defasado. Nos últimos anos, foram descobertas novas espécies, reclassificadas as já conhecidas e surgiram evidências suficientes para mudar o conhecimento da pré-história humana e tornar obsoleto o que foi escrito há mais tempo - na década de 80, por exemplo.
Por outro lado, a pré-história é uma área que avança com uma rapidez particular - em parte por se beneficiar dos avanços de outras ciências, como no que diz respeito à datação, e em parte porque as evidências para períodos mais antigos são relativamente tão escassas que um único fóssil em bom estado pode colocar de ponta-cabeça tudo que se sabia anteriormente. O resto da coleção pode muito bem estar dentro do seu prazo de validade. Assim espero.
Ceticismo à parte, a iniciativa da UNESCO é bem-vinda. Só resta torcer para que ela seja um ponto de partida, não de chegada, e que nossos africanistas solucionem as eventuais falhas do material.
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