Levei algum tempo até decidir o que fazer no primeiro post. Uma apresentação pessoal? Um manifesto proclamando os objetivos deste blog? No final, achei que seria interessante começar com uma justificativa do que faço. Por sorte, tinha um texto engavetado tratando justamente disso. Aos eventuais leitores, aqui vai:
Em defesa da história
Circula pela Câmara dos Deputados um projeto de lei (no 3759/2004) buscando regular a profissão de historiador. Não é o primeiro projeto nesse sentido e, como ele está indo de uma gaveta a outra desde 2004, é de se pensar que os historiadores talvez não sejam uma prioridade para os representantes do povo. Isso poderia ser explicado pela falta de um lobby forte, mas existem outras profissões, já regulamentadas, que também não têm grande força política, como massagistas, instrutores de trânsito, repentistas e enólogos, entre outros. O mais provável é que, enquanto todos sabem a importância de um instrutor de trânsito, ninguém esteja muito seguro de por que, exatamente, termos historiadores à solta. Sem entrar no mérito do projeto mencionado, gostaria de tentar justificar nossa existência ao público.
O que fazem os historiadores, além de atormentar os alunos de colégio (ou, com uma frequência preocupante, de ser atormentados por eles)? Simplesmente o óbvio: aprofundar nosso conhecimento e compreensão da história e divulgá-lo. Mas de que adianta isso? Para que serve a história? Apesar de isso nem sempre ser dito aos alunos que tentam apenas decorar o conteúdo para passar no vestibular, ela serve para algumas coisas. Em primeiro lugar, ajuda a explicar o presente, fornecendo um contexto para as pequenas e grandes situações que vivemos. Por que o Brasil é um só país, enquanto a América espanhola se fragmentou em tantos pedaços? Por que os Estados Unidos se tornaram a principal potência mundial, enquanto o Brasil nunca conseguiu emplacar? Por que a maior parte dos brasileiros concilia um catolicismo nominal com crenças afrobrasileiras e espíritas que deixariam o papa de cabelo em pé? Por que você está lendo um texto escrito em letras derivadas dos fenícios, em um idioma derivado do latim que, ao longo do tempo, sofreu influências árabes e indígenas, entre outras? Eis uma função da história: dizer porque acabamos vivendo de uma certa maneira, e não de outra qualquer.
Apesar de isso ser importante, a história seria pouco mais do que umbigologia se não fosse além desse ponto, o que leva a uma segunda função: mostrar as outras maneiras de viver que foram adotadas ao longo do tempo, seja por nossos ancestrais ou por outros povos, e mostrar que essas variações da arte da vida possuem motivos para existir. Em outras palavras, explicar que não tem cabimento pensar que os povos do passado eram apenas estágios incompletos do desenvolvimento do que viriam a ser os brasileiros do século 21, mas que eram pessoas com valores próprios, vivendo em situações próprias e lidando com seus próprios problemas, assim como nós. Por exemplo, até poucas décadas atrás, a humanidade resolvia suas necessidades de comunicação sem internet e celulares, sem sentir falta desses recursos inexistentes. Se isso parece óbvio aos que viveram essa época, é algo que precisará ser explicado à próxima geração, que não conheceu nada diferente. É preciso explicar, da mesma forma, que nem todos os povos atuais vivem como os brasileiros, e que eles têm suas razões para agir como agem. Existem causas pelas quais os japoneses mantêm o sistema de escrita mais complexo do mundo, ao invés de se converterem ao nosso alfabeto; causas pelas quais os chineses mantêm um sistema político muito diferente da nossa democracia de “um voto a cada quatro anos”; causas pelas quais os muçulmanos não veem problemas em um homem ter várias mulheres, enquanto nós preferimos manter apenas uma pessoa por vez, ao menos oficialmente. Não que a nossa cultura seja a única com falhas e todas as demais sejam perfeitas. Mas, antes de querer mudar os outros, faz sentido perguntar-se: “afinal, o que os tornou diferentes?”. Um pouco de choque cultural às vezes faz bem.
Existe pelo menos mais uma função para a história e os historiadores, provavelmente a menos popular de todas, por ofender muitas sensibilidades: a de questionar mitos e certezas. O tempo todo, as pessoas legitimam seus comportamentos e suas identidades apelando ao passado: CTGs que preservam o “verdadeiro gaúcho”, políticos que fazem o que “nunca antes na história deste país” se viu, religiosos que baseiam sua visão de mundo e moralidade no que aconteceu na Palestina há dois mil anos atrás, e por aí vai. Os historiadores têm muito o que dizer sobre esses e outros usos do passado, do mesmo modo que os médicos deveriam ser consultados sobre supostos remédios milagrosos. E, se às vezes os remédios são realmente bons, no mais das vezes o seu único efeito é o placebo. As apropriações da história não são muito diferentes. Não que os historiadores queiram se comparar aos médicos, mas talvez o leitor venha a concordar que eles são, pelo menos, tão importantes quanto os repentistas.
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