Falar de períodos de crise é fácil; definir o que exatamente conta como uma crise é mais difícil. Mesmo assim, não parece exagerado dizer que a primeira metade do século 20 foi uma fase de crise para a civilização ocidental. Se alguém duvida, que vá discutir com Eric Hobsbawm - foi ele que chamou o período de 1914 a 1945 de "Era da Catástrofe".
As duas guerras mundiais desempenharam sua parte nisso, com o ápice da ciência e tecnologia sendo empregado para facilitar a morte em grande escala. Material e moralmente, os países europeus foram abalados pelas guerras - não é por acaso que em 1918 o historiador Oswald Spengler publicou O declínio do Ocidente, livro que pretendia mostrar que as civilizações passavam por fases de ascensão e queda (o título do livro já conta o que ele pensava do estado da sua própria civilização). Com o final da I Guerra, um livro que antes pareceria absurdo tornou-se um grande sucesso. Mas o problema era anterior a 1914, e seus sintomas culturais podem ser percebidos retrospectivamente: o século 20 começou com transformações nas ciências (Einstein e sua teoria da relatividade especial, de 1905), na psicologia (A interpretação dos sonhos, primeiro grande trabalho de Freud, foi publicado em 1899) e na arte (Les demoiselles d'Avignon, de Picasso, de 1907).
As mudanças tinham um vínculo entre si: todas foram no sentido de tornar o mundo um lugar mais difícil de compreender. Einstein substituiu o mundo bem ordenado de Newton por um onde o tempo e o espaço eram relativos; concordemos ou não com a psicanálise, Freud mostrou que não éramoss os seres racionais que pensávamos ser, e nem ao menos os senhores de nossas próprias mentes, sujeitas a influências que nos passam despercebidas; as artes visuais, das quais Picasso é apenas um dos expoentes, afastavam-se cada vez mais do realismo em busca de novos mundos, interiores e imaginativos, a explorar. O ser humano racional, senhor de si e do mundo, estava em baixa.
Como seria de esperar, a crise teve consequências também na literatura - tomando o caso mais famoso, foi em 1922 que James Joyce publicou Ulysses com sua narrativa tortuosa e repleta de fluxos de consciência. Mas Joyce não era o único escritor importante na ativa; outro autor que transformou a literatura, e infelizmente um tanto menos conhecido no Brasil, foi o americano Howard Phillips Lovecraft (1890-1937).
Influenciado principalmente por Poe, Lovecraft foi um dos principais escritores de histórias de terror do século 20. Sua grande contribuição ao gênero, que reflete bem a época em que viveu, consistiu em tirar a importância dos seres humanos e descrever um universo que não foi feito para nós e que não fomos feitos para compreender.
Para a literatura de terror anterior, a humanidade estava, de alguma forma, no centro do palco. Nos contos de Poe, o terror estava na insanidade e naquilo que um louco é capaz de fazer (O gato preto, Coração delator, O barril de Amontillado - a lista dos loucos assassinos em Poe não é pequena). Frankenstein, de Mary Shelley, não é sobre um monstro ensandecido, mas sobre a responsabilidade de um criador negligente, o dr. Frankenstein, por sua criatura imperfeita, que ao ser abandonada por seu criador e rejeitada pelo mundo acaba trilhando o caminho do mal - a analogia com a relação entre o Deus cristão e a humanidade é evidente. Drácula, de Bram Stoker, é sobre a luta dos protagonistas armados com a ciência moderna para proteger a civilização inglesa - e as mulheres inglesas - de um monstro primitivo, perigoso mas infantil, saído do interior da Transilvânia, além dos limites da Europa civilizada. E, como os cineastas posteriores mostraram com clareza excessiva, é também sobre o fascínio e o medo da sedução: afinal, o vampiro sai à noite em busca de virgens inocentes, que depois de seu ataque são transformadas em mulheres agressivas e também sedutoras - de novo, a metáfora está aí para quem quiser ver. E a lista poderia seguir porque, de alguma forma, as pessoas ocupam lugar de destaque nas histórias de terror: contos de fantasmas com suas tragédias antigas, O médico e o monstro, em que o monstro é o lado negro do ser humano, e assim vai...
Até que Lovecraft tirou esse papel de destaque que ocupávamos até então. Suas histórias, como quaisquer outras de terror, são sobre medos humanos, mas o medo aqui é o de ser uma criatura insignificante vivendo em um universo estranho e hostil, que parece mais estranho e hostil quanto melhor o compreendemos. Na mitologia de Lovecraft, o mundo não é governado por deuses ou demônios, que ao menos são seres com motivações humanas e compreensíveis, e que se ocupam com a humanidade, seja para salvá-la ou corrompê-la. A perspectiva lovecraftiana é pós-religiosa: os "deuses" são seres alienígenas cujas motivações são incompreensíveis, cujas formas verdadeiras podem enlouquecer uma mente humana limitada, e que simplesmente não se importam com a humanidade, estando tão acima dela que nem percebem sua existência. A humanidade, longe de desempenhar um papel cósmico central, é uma espécie comum que apenas conseguiu dominar um planeta comum porque os seres realmente avançados se afastaram temporariamente. Mas eles voltarão:
Nem devemos pensar que o homem é o mais antigo ou o último dos mestres da Terra, ou que a vida e substância comum estão sozinhas. Os Antigos eram, os Antigos são e os Antigos serão. Não nos espaços que conhecemos, mas entre eles, eles andam serenos e primevos, sem dimensões e invisíveis para nós. Yog-Sothoth conhece o portal. Yog-Sothoth é o portal. Yog-Sothoth é a chave e o guardião do portal. Passado, presente, futuro, todos são um em Yog-Sothoth. Ele sabe por onde os Antigos entraram no passado, e por onde Eles entrarão novamente. Ele sabe onde Eles percorreram os campos da Terra, e onde Eles ainda os percorrem, e porque ninguém pode observá-los enquanto andam. (...) Sua mão está em vossas gargantas, e nem assim os vedes; e Sua morada é una com seu umbral protegido. Yog-Sothoth é a chave do portal, onde as esferas se encontram. O homem governa agora onde Eles já governaram; Eles em breve governarão onde o homem governa agora. Depois do verão vem o inverno, depois do inverno, o verão. Eles aguardam pacientes e potentes, pois aqui Eles reinarão novamente. (O horror de Dunwich, c. 5)
Ainda pior que a existência de monstros completamente desumanos que ameaçam a humanidade sem nem perceber é o problema de esses monstros serem reflexos de um cosmos não menos desumano.
A coisa mais misericordiosa do mundo, acho, é a inabilidade da mente humana de correlacionar todos seus conteúdos. Vivemos em uma ilha plácida de ignorância em meio aos mares negros do infinito, e não fomos feitos para viajar longe. As ciências, cada uma avançando em sua própria direção, até o momento nos fizeram pouco mal; mas algum dia a reunião do saber agora desconexo abrirá panoramas tão aterrorizantes da realidade, e de nossa posição assustadora nela, que iremos ou enlouquecer com a revelação ou fugir da luz rumo à paz e segurança de uma nova Idade das Trevas (O chamado de Cthulhu, c. 1).
Talvez por isso Lovecraft seja tão atual mais de 70 anos depois de sua morte: o medo de que ele fala continua vivo sob a superfície. Como se sentir confortável com o pensamento de que vivemos em um universo que não surgiu por nenhum motivo aparente, evoluímos como qualquer outra espécie, sem um desígnio especial por trás disso, nossos cérebros não foram feitos para compreender a verdadeira estrutura do mundo (quem realmente consegue compreender a vastidão de um ano-luz, de um milhão de anos, ou a estranheza de que tudo aquilo que vemos ao nosso redor e consideramos sólido, inclusive nós mesmos, são aglomerados de pequenas partículas em meio ao vazio?), e não há nenhuma base segura no mundo para nossos ideais de beleza, paz, razão e justiça?
Algumas religiões oferecem uma resposta, identificando o sentido do mundo com a vontade divina. Uma alternativa não religiosa foi pensada pelos filósofos existencialistas (de Nietzsche, que viveu antes de surgir o termo existencialista, em diante): o sentido não é inerente ao mundo, então só pode ser criado por nós. Acho que os existencialistas estão mais próximos da verdade, o que não deixa de ser uma pena: o existencialismo não oferece o conforto emocional das religiões.
Qualquer que seja a sua resposta, dê uma chance aos contos de Lovecraft. Existem traduções para o português à venda nas livrarias, e a versão original em inglês já pode ser lida online no site do Gutenberg Australia.
Veja como você reaje à perspectiva de um mundo assustadoramente sem sentido, e então olhe ao redor...
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