A última grande notícia na internet é a suposta descoberta de uma cura para a AIDS. O que aconteceu, na verdade, foi a publicação de um artigo confirmando que um paciente, Timothy Brown, submetido a tratamento com células tronco em 2007, não apresentou sinais de HIV desde então. Por “tratamento” leia-se um transplante de medula óssea, realizado para tratar leucemia; o doador tinha resistência natural ao HIV e a resistência foi transmitida ao receptor. Ainda não é a cura da doença: o método é caro demais, arriscado demais para os pacientes e envolve encontrar doadores resistentes ao HIV que sejam compatíveis com os infectados. Se Brown tem muito o que comemorar, para o resto do mundo fica apenas um vislumbre de uma vitória ainda distante contra essa doença.
Falando em doenças, talvez elas não sejam um tema apropriado para conversas leves, mas vou aproveitar a oportunidade porque esse é um assunto sobre o qual muito pode ser dito. As doenças e a luta contra elas têm sido não só uma parte integrante do nosso dia-a-dia (alguém ainda lembra da histeria em torno da gripe suína?), o que já seria extremamente importante, mas por vezes entraram no palco dos acontecimentos de forma mais drástica. Dois casos familiares foram a Revolta da Vacina, no Rio de Janeiro do começo do século passado, e a peste bubônica que assolou o Velho Mundo nos séculos 6 e 14 (não, a peste negra não atacou só uma vez). Mas houve um caso que ajuda a explicar algumas coisas em nossas vidas que normalmente não paramos para considerar: por que falamos português e não uma língua tupi? Por que a imensa maioria dos brasileiros descende de imigrantes (voluntários ou não) da África e Eurásia, e poucos descendem de índios? Por que, não só no atual território brasileiro mas em todo o continente americano, os índios foram subjugados, ao invés de expulsarem o que no início era um punhado de conquistadores?
Como sempre, a resposta tem muitas partes. Para começar, não faz sentido achar que os habitantes daqui se viam como “índios”, membros de algum tipo de grande comunidade continental e que deviam se unir contra um inimigo comum. Mais ou menos como os europeus, eles eram membros de grupos que tinham suas próprias relações e conflitos, e mais de uma vez envolveram os europeus em suas guerras – um dos recursos de Cortez para conquistar o império asteca mexicano foi o auxílio de povos que não estavam satisfeitos com sua dominação pelos astecas, e que contribuíram com exércitos muito maiores do que o bando de conquistadores espanhóis. Com o tempo, quem ganhou com isso foram os europeus, mas não havia como saber na época que seria uma má ideia recrutar os recém-chegados como aliados.
(Colocando de outra forma: antes de Colombo, não existiam índios na América. Existiam incas, astecas, maias, tupis, guaranis, apaches, sioux e centenas de outros povos diferentes. Foram os europeus que colocaram todos eles no mesmo saco, chamando todos de índios.)
Mas voltemos às doenças, que foram ainda mais importantes. O segredo do sucesso de espanhóis e portugueses era a sua capacidade de transmitir doenças às quais os nativos não tinham resistência. Os europeus pertenciam a sociedades em que os animais domésticos estavam por toda parte em contato com humanos. Grande parte das doenças humanas surgiu de parasitas de animais que mutaram para infectar humanos (a gripe suína, como o nome diz, originou-se nos porcos, por exemplo). Ao longo dos milênios, animais transmitiram doenças para seres humanos, que aos poucos foram adquirindo resistência (ou, melhor dizendo, as pessoas mais resistentes às doenças tinham maior chance de sobreviver e ter filhos). E, quando os europeus chegaram na América, seu arsenal biológico acumulado ao longo do tempo devastou populações que nunca haviam tido contato com esses germes. Além de matar milhões, as epidemias espalharam o caos pelas sociedades nativas; por exemplo, Pizarro conquistou o império inca dos Andes com um pequeno grupo de conquistadores, em grande parte porque a varíola havia chegado antes dele, como uma onda de destruição transmitida de região a região, e matado o inca, ou imperador, iniciando uma guerra civil pela sucessão ao trono da qual os espanhóis se aproveitaram. Se hoje em dia doenças que matam algumas centenas de pessoas já geram pânico, tente imaginar uma que, aparentemente surgida do nada, destruísse uma porcentagem significativa da população, incluindo as lideranças do governo. Foi isso que os incas enfrentaram na década de 1530, antes que o primeiro espanhol chegasse em suas terras. Não chega a ser surpreendente que eles tenham sido conquistados nessas circunstâncias; o que realmente causa surpresa é que ainda tenham montado uma resistência à conquista, liderada por remanescentes da família real – o último soberano inca, Tupac Amaru, foi capturado e executado apenas em 1572.
Porque os europeus não foram mortos pelas doenças infecciosas americanas? Simplesmente porque não havia muitas. Os europeus adquiriram doenças com seus animais domésticos, o que os índios não podiam fazer porque no continente americano quase não havia animais domesticáveis. A falta de animais levou a uma falta de doenças transmissíveis capazes de destruir os europeus, e isso decidiu a sorte de nosso continente.
Essa tese foi popularizada por Jared Diamond em seu Armas, germes e aço, um livro bastante controverso entre a comunidade acadêmica e muitas vezes acusado de determinismo geográfico. Em todo caso, a polêmica diz respeito a outras partes do livro, e a importância dos germes na conquista da América é amplamente reconhecida.
Mais um fato importante: essas mesmas doenças contribuíram para que a maior parte dos escravos do Brasil fossem importados da África, e não índios capturados localmente. Um índio tinha grande chance de morrer doente em pouco tempo, enquanto que um africano – com mais resistência às doenças dos europeus, que eram as mesmas de todo o Velho Mundo – tinha maior probabilidade de sobreviver, daí isso o maior investimento em africanos. Não que a escravidão indígena tenha sido abandonada por inteiro, principalmente na região de São Paulo, onde as bandeiras tinham como um de seus objetivos precisamente resolver o problema da mão-de-obra do que então era uma área periférica demais para manter o tráfico negreiro em grandes proporções.
Doenças e economia, gente, e não besteiras como “vagabundagem dos índios” ou “docilidade dos negros”, eis o que determinou os rumos da escravidão no Brasil; entender isso nos ajudaria não só a perceber o que realmente aconteceu, mas também a esquecer esses e outros preconceitos.
Eu sabia que as doenças transmitidas pelos europeus contribuíram muito para a conquista da América, mas não havia relacionado o fato de uma maior transmissão de doenças e de um maior número de doenças aos animais domésticos.
ResponderExcluirMargô Henrich