De todos os grupos minoritários que costumamos esquecer de incluir na história, cabe papel de destaque para um que não tem nada de minoritário e consiste, na verdade, em metade da população mundial. Estou falando, naturalmente, das mulheres.
Isso se deve, em grande parte, ao fato de que elas tradicionalmente ficaram mais ou menos relegadas à vida doméstica, privada, enquanto a história por muito tempo se concentrou nos grandes acontecimentos da vida pública. Esse foco está mudando aos poucos, mas a essência permanece. Se um leitor me disser que gosta da Grécia antiga, posso supor com bastante segurança que ele sabe um pouco sobre a alta cultura - a tríade filosófica Sócrates-Platão-Aristóteles, a tríade de dramaturgos trágicos Ésquilo-Sófocles-Eurípides, a tríade de historiadores Heródoto-Tucídides-Políbio, poetas como Homero, cientistas como Arquimedes - e um pouco sobre os grandes acontecimentos políticos e militares - a construção da democracia ateniense, as guerras com os persas, a Guerra do Peloponeso, a ascensão de Alexandre - mas provavelmente sabe pouco ou nada de como viviam os gregos em seu dia-a-dia. Como o envolvimento feminino na alta cultura, na política e na guerra na Grécia clássica eram bastante desencorajados, para dizer o mínimo, ele só saberá que terão existido mulheres ali porque, de alguma forma, todos esses homens famosos precisavam se reproduzir.
A Grécia clássica é um caso extremo, e em geral as mulheres encontraram formas de participar da vida pública e dos grandes acontecimentos. Algumas foram rainhas reinantes, de Hatshepsut e Cleópatra às duas Elizabeths da Inglaterra e Catarina da Rússia. Outras eram o poder por trás do trono: Lívia, esposa do primeiro imperador romano, Augusto, era tão temida quanto o marido. Voltando a um tema anterior, é extremamente provável que Nero tenha matado sua mãe, Agripina. Ele fez isso por ser mau e bandido? Não exatamente; na verdade, ele respondeu do seu modo violento a um problema sério para qualquer imperador megalomaníaco de respeito: a influência política de Agripina era comparável a do próprio Nero, e dizia-se que ela tinha envenenado o imperador anterior, Cláudio, para apressar a subida de Nero ao poder. Se casar com um imperador, envenená-lo e continuar exercendo força política através do filho por alguns anos não é uma carreira importante, não sei o que é.
Além das rainhas, as mulheres estiveram em quase todos os campos possíveis. Elas foram desde cientistas, como Marie Curie e a marquesa du Châtelet (mais conhecida por ser amante de Voltaire, também contribuiu para a física do século 18) até ativistas, como Mary Shelley (a mesma de Frankenstein) e Olympe de Gouges, que em plena Revolução Francesa propôs uma Declaração dos Direitos da Mulher. Mas a ideia de Olympe não deu certo, e seu carrasco Robespierre continua sendo mais conhecido do que dela.
Contudo, integrar as mulheres na história não pode ser feito simplesmente mencionando exceções como essas. Apesar de todas essas mulheres terem levado vidas interessantes, elas foram algumas das raras "vencedoras" em um jogo em que a maioria não tinha como vencer e realizar grandes feitos (o que também se aplica à maior parte dos homens). Mencionar Olympe de Gouges numa história da Revolução Francesa simplesmente substitui uma história dos grandes homens por uma dos "grandes homens... e uma mulher", quando a maior parte dos homens não era como Robespierre, Danton ou Napoleão, e a maior parte das mulheres não era como Olympe.
Uma alternativa é partir para os grandes processos históricos e ignorar o indivíduo, fazendo uma história da Revolução Francesa voltada para a ascensão da burguesia e do nacionalismo, ou o que for, e que possa passar igualmente sem Olympes e Robespierres. Para mim, os processos são importantes, mas pensar só neles é tirar o "cheiro de humanidade" da história, e atribuir toda a capacidade de agir e realizar mudanças a forças impessoais e não a pessoas concretas. Sinto muito, mas acho que não funciona.
O que pode funcionar é aumentar nossos horizontes gradualmente, até que alguém encontre uma maneira de juntar todas as pontas soltas. Como um exemplo disso, gostaria de mostrar um pedaço da história, muito ignorado por aqui, onde as mulheres tiveram participação importante - o Japão antigo.
O Japão atual é um lugar um tanto machista, e a imagem que se faz do japonês antigo (como a do gaúcho tradicional), é a do homem guerreiro, honrado e viril, como se alguma vez todos os japoneses tivessem sido samurais perfeitos. Deixando de lado as seleções e idealizações inerentes aos tradicionalismos, tanto os de CTGs quando os de escolas de artes marciais, os samurais não governaram o Japão desde sempre. E antes deles, o Japão era um lugar diferente.
O período Heian começou em 794, com a construção da nova capital Heian-kyô, Capital da paz e tranquilidade (atual Kyoto), e terminou em 1192, quando Minamoto no Yoritomo tornou-se o primeiro xogum, ou governante militar, inaugurando um estilo de governo pelos guerreiros que duraria até o século 19. Apenas no final do período Heian os guerreiros das províncias começaram a se aproximar do poder; por séculos, o Japão foi governado por um imperador semidivino e sua corte de civis refinados, onde as disputas políticas não eram decididas pelas armas, mas pelo prestígio. Pertencer a uma família nobre e ter um bom currículo na administração não bastava para cair nas graças do imperador ou de seus regentes do clã Fujiwara: era preciso ser sofisticado, conhecer a cultura chinesa, ter uma caligrafia elegante, saber fazer incenso ou jogar bola, mostrar apreciação pelas coisas belas da vida e, mais importante, dominar a arte da poesia.
(Quanto à cultura chinesa, ela por séculos foi no leste asiático o que a cultura greco-romana foi na Europa: o modelo a ser seguido e imitado.)
Hoje a poesia tem sua importância cultural diminuída em toda parte, exceto na forma de música, o que torna difícil entender como ela era essencial para os aristocratas do Japão Heian. Os poemas que eles compunham de improviso pressupunham erudição e conhecimento de poesia japonesa e chinesa, que possibilitavam todo tipo de referências sutis que apenas os entendidos compreenderiam. Fazer um poema, então, era uma mostra de boa formação e uma chance de falar nas entrelinhas: um poeta que conseguisse xingar um rival fazendo referência aos clássicos literários ganhava a apreciação de todos, especialmente se o insulto fosse tão inteligente que todos rissem do rival sem que ele percebesse o que tinha acontecido.
Nessa sociedade de corte, as mulheres tinham sua chance de brilhar, e elas eram participantes ativas da cultura de elite. Elas faziam a moda, faziam seus poemas para competir entre si por fama e para impressionar os homens, consumiam a literatura da época - e produziam essa literatura. Diversos clássicos da literatura japonesa foram escritos pelas nobres de Heian-Kyô, boa parte deles sendo relatos de vida, entre diários e autobiografias, muito antes de essa literatura intimista entrar em voga na literatura ocidental. O mais famoso de todos (e acredito que o único lançado em português) é o Livro de travesseiro (Makura no soshi) de Sei Shônagon, dama de companhia de uma imperatriz, escrito por volta do ano mil. O Livro de travesseiro é uma coletânea caótica e fascinante dos pensamentos da autora, incluindo dezenas de listas ("coisas que provocam impaciência", "bons temas de poesia", "coisas que não podem ser comparadas") e episódios da vida na corte, principalmente os momentos em que ela e sua imperatriz brilhavam.
Murasaki Shikibu, dama de companhia de uma imperatriz rival (os imperadores podiam ter diversas esposas e concubinas, cada uma tendo o apoio da facção de seus parentes, e assim as preferências do imperador eram uma questão política), também escreveu um diário (onde, previsivelmente, louvava sua imperatriz e criticava Sei Shônagon) e, mais importante, a História de Genji (Genji monogatari), a história ficcional de Genji, o príncipe brilhante, que alguns classificam como o primeiro romance escrito. E que, também previsivelmente, não foi lançada no Brasil.
Como assim, "jogar bola"?
ResponderExcluirSim, jogar bola mesmo, se bem que era mais uma espécie de embaixadinha em grupo do que qualquer coisa parecida com futebol.
ResponderExcluirSegundo Ivan Morris (The world of the shining prince, p. 152 ss.), o jogo se chamava kemari, e consistia em formar um círculo e chutar uma bola de couro uns para os outros, sem que a bola tocasse o chão. Nas crônicas do ano 905, consta que o imperador assistiu a um bando de nobres jogando e chegando a 260 passes, o que deve ter sido um recorde insuperável.