dezembro 05, 2010

4. Nero e os limites do conhecimento

Existem três coisas que são de conhecimento geral sobre o imperador romano Nero (quinto imperador, governou de 54 até 68):
1 - ele era maaaaau e bandido;
2 - de tão mau, colocou fogo em Roma. De tão bandido, tocou lira e cantou durante o incêndio;
3 - de tão mau, perseguiu cristãos. De tão bandido, matou os apóstolos Pedro e Paulo.

Existem outros fatozinhos mais ou menos conhecidos - ele matou também a própria mãe, se considerava um artista, a população celebrou a sua morte - e todos contribuem para formar a imagem de um vilão insano, digno de filmes de James Bond.

Em outras palavras, Nero se tornou praticamente um símbolo perfeito de uma das concepções que as pessoas fazem de Roma: a de um império moralmente corrompido, entregue a orgias, com uma sucessão de tiranos homicidas no governo, que passavam seus dias entre as festas e atirar os cristãos aos leões. De alguma maneira difícil de entender, essa visão consegue coexistir com a de Roma como império iluminado, o maior do mundo, fonte de leis e cultura, de altas realizações na engenharia, e que vivia se protegendo dos bárbaros que, esses sim, eram realmente maus.

Resolver essa esquizofrenia cultural seria assunto para mais de um livro, especialmente porque as duas visões vêm da própria época romana: como hoje existem pessoas que acham que o Brasil está se tornando uma potência e as que pensam que ele está perdido, que a geração de hoje não tem moralidade, a família tradicional está desaparecendo e há bandidos em cada canto (etc etc etc), alguns romanos achavam que estava tudo bem com o império enquanto outros viam problemas por todos os lados e louvavam os bons velhos tempos em que Roma supostamente era simples e virtuosa.

Mas voltemos a Nero. Como é que sabemos que ele era desse ou daquele jeito, que fez essas ou aquelas coisas? Como podemos saber qualquer coisa a respeito dele? Eis o problema básico da atividade de historiador.

Via de regra, não usamos laboratórios (os arqueólogos podem usar laboratórios para datar materiais, mas essa é praticamente a única exceção). Não temos como fazer experimentos que recriem o passado, colocando algumas pessoas dentro da reconstrução de uma casa romana e fazendo um reality show a respeito (seria uma experiência exótica e talvez desse audiência, mas não aprenderíamos nada sobre a vida romana). Não temos como entrevistar Nero, seus amigos, subordinados, inimigos, nem ninguém que tenha vivido na metade do século 1, a menos que algum médium prestativo se disponha a fazer uma contribuição à ciência.

O que fazemos é agir um pouco como Sherlock Holmes: ele também não podia reconstruir o passado para fazer suas investigações. Ao invés disso, ele juntava pistas - os vestígios que o passado deixou (relatos das testemunhas, pegadas, a arma do crime...) - e com elas formulava teorias para responder a questão que estava investigando. Como Sherlock era um gênio com uma capacidade de observação impressionante, e ainda por cima tinha a vantagem injusta de ser o protagonista, quase sempre chegava à conclusão certa e descobria quem estava quebrando bustos de Napoleão, quem roubou o cavalo Estrela de Prata ou o que significava o ritual Musgrave.

O método do historiador é mais ou menos o mesmo: fazer uma pergunta, juntar as evidências, interpretá-las de uma forma que faça sentido. Infelizmente, enquanto Sherlock podia provar definitivamente que estava certo encontrando o cavalo desaparecido, ou capturando o assassino e ouvindo sua confissão, nem toda pergunta histórica tem uma prova tão conclusiva - é raro alguém encontrar o equivalente a um diário de Nero contando todas as suas  preparações para incendiar a capital. Na falta de uma solução definitiva, os historiadores passam boa parte do tempo discutindo interpretações, se tal evidência é confiável ou não, qual de dois depoimentos contraditórios está correto - algo como os desembargadores em um tribunal.

(Apenas para constar, as comparações com Sherlock Holmes ou com juízes não são inéditas. São da autoria de Carlo Ginzburg, um dos maiores historiadores vivos.)

Então, quais são as pistas que temos sobre Nero? Não muitas; moedas do seu reinado, ou os vestígios do seu palácio, podem ajudar a compreender a situação de Roma sob seu governo, mas não nos dizem muito sobre o indivíduo. Para compreendê-lo, precisamos nos voltar para os textos, e esses também são poucos. A maior parte do que se escreveu na época, como em qualquer período antes da imprensa, está perdido - como todos os livros da época eram manuscritos, a sobrevivência de um livro qualquer através das gerações dependia de pelo menos uma das poucas cópias parar nas mãos de alguém disposto a preservar seu manuscrito e fazer uma nova cópia se necessário. A surpresa, nessas condições, não é que tenhamos perdido quase tudo, mas que alguns textos tenham sido preservados.
Infelizmente, não temos muito acesso ao que os contemporâneos de Nero pensavam dele. Algumas menções passageiras sobreviveram, mas nenhum relato detalhado. Para encontrar os primeiros relatos, precisamos avançar no tempo até várias décadas após a morte do imperador, quando surgem as principais fontes do que podemos saber sobre ele: as Vidas dos doze césares, de Suetônio, e os Anais e Histórias de Tácito, escritos no começo do século 2.

Em tese, encontramos nossas pistas, e bastaria juntar o que dizem para podermos saber que tipo de pessoa foi Nero. Uma leitura rápida das fontes mostra que concordam no básico: o governo de Nero começou bem mas logo tornou-se tirânico, com direito a montes de execuções, Roma pegou fogo, ele começou a perseguir os cristãos, e eventualmente se tornou tão odiado que alguns dos principais generais resolveram derrubá-lo e, para escapar à captura, Nero cometeu suicídio. Apenas para complicar os pobres romanos, cada general agiu separadamente em busca do poder, causando uma guerra civil após a morte de Nero, e ainda hoje 69 é conhecido como o Ano dos Quatro Imperadores, em referência aos breves reinados de Galba, Oto, Vitélio e o início do reinado de Vespasiano.

Mas o diabo está nos detalhes. Primeiro problema: é discutível até que ponto podemos confiar nas fontes. Ambos escreveram quase cinquenta anos depois da morte de Nero, quando a coleta de informações era mais difícil. As Vidas de Suetônio são especialmente problemáticas: ele gostava de falar das intrigas familiares, das anedotas picantes e de fatos sensacionalistas que tornam seu livro o equivalente antigo a um tabloide - foi ele, por exemplo, quem disse que Calígula planejava tornar seu cavalo cônsul. Tácito é considerado um historiador mais confiável, mas parte de seu relato sobre Nero está perdido. Ainda por cima, os dois, mas principalmente Tácito, não eram grandes fãs do regime imperial, preferindo a tradição republicana associada aos senadores.

Até agora, temos relatos escritos mais tarde do que o desejado, e por autores que tinham seus motivos para, na dúvida, falar mal de um imperador. Outro problema, agora mais sério: eles não concordam em tudo. Suetônio diz que Nero foi o responsável pelo incêndio de Roma, e enquanto assistia a destruição do alto de uma torre cantou uma música sobre o saque de Troia (Vida de Nero, c. 38). Mas Tácito conta uma história completamente diferente: Nero nem estava em Roma quando começou o incêndio, e ao voltar construiu abrigos para os sem-teto, inclusive em suas próprias terras, e trouxe suprimentos de comida a preços baixos - medidas de relações públicas que teriam fracassado graças ao rumor de que, durante o incêndio, ele teria cantado sobre a destruição de Troia em um palco particular (Anais, 15, 39). Não é preciso muito esforço mental para deduzir que pelo menos uma dessas narrativas está errada. Apesar de o Nero piromaníaco de Suetônio ser o preferido no imaginário das pessoas, a versão de Tácito tem um ponto forte a seu favor: Tácito detestava Nero, e faz longas listas das barbaridades que ele cometeu. Se Tácito pudesse ter atribuído o incêndio de Roma a Nero com alguma credibilidade, provavelmente teria feito exatamente isso.

Outras questões também são difíceis de resolver. Suetônio e Tácito concordam que Nero perseguiu os cristãos - Suetônio fala deles como "adeptos de uma superstição nova e maléfica", e Tácito diz que serviram como bodes expiatórios pelo incêndio de Roma, para que Nero pudesse recuperar sua credibilidade. Nenhuma menção a cristãos específicos, como Pedro e Paulo, e a Bíblia também não nos diz nada sobre seus supostos martírios em Roma. Os martírios só são mencionados em documentos ainda posteriores, como a História Eclesiástica de Eusébio de Cesareia, do início do século 4:
"Foi também ele [Nero], o primeiro de todos os figadais inimigos de Deus, que teve a presunção de matar os apóstolos. Com efeito, conta-se que sob seu reinado Paulo foi decapitado em Roma. E ali igualmente Pedro foi crucificado. Confirmam tal asserção os nomes de Pedro e de Paulo, até hoje atribuídos aos cemitérios da cidade" (História Eclesiástica, livro 2, 25, 5).
Podemos afirmar confiantemente que Nero perseguiu cristãos, mas como ter certeza desses dois em particular? Eusébio e outros autores cristãos estariam relatando uma tradição autêntica, ou os cristãos de Roma teriam associado a sua cidade a dois dos maiores líderes cristãos, com todo o prestígio que essa associação traz ainda hoje, sem grandes evidências?

Finalmente, é discutível se Nero era mesmo universalmente odiado. Suetônio termina sua Vida dizendo que algumas pessoas colocavam flores em seu túmulo, e havia mesmo pessoas que se faziam passar por Nero, com algum sucesso. Tácito diz que a "porção respeitável" da sociedade alegrou-se com sua morte, mas não a "população degradada" (Histórias, 1, 4). Vindo de um romano da elite, isso não leva a crer que o imperador era detestado pela elite, mas não pela população em geral?

É por incertezas assim que questões como "o verdadeiro Nero" são discutidas há tempo e continuarão sendo: infelizmente, nosso conhecimento tem limites e em alguns casos só podemos dizer o que é mais ou menos provável. O que exatamente ele fez, ou como conciliar toda sua violência com o respeito que os pobres aparentemente tinham por ele, são quebra-cabeças com várias peças faltando.

Mas continuo achando que ele não teve nada a ver com o incêndio.

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