Às vezes dou de cara com um texto que, mais do que simplesmente gostar, queria eu próprio ter escrito, por articular muito bem coisas que estava pensando vagamente. Aqui segue uma delas, um post do André Bueno, autor do Projeto Orientalismo - em poucas palavras, uma análise da nossa ignorância sistemática acerca das civilizações asiáticas.
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O problema de se escrever sobre o ‘Oriente’ no Brasil
Já se passou mais de uma década desde que inaugurei o Projeto Orientalismo em 2000. Nesse tempo, para além de divulgar a história antiga de China e de Índia, tentei prestar atenção nas possíveis mudanças de percepção, acerca da Ásia, que ocorreriam tanto no meio acadêmico quanto junto ao público leigo. É possível atestar algum aumento no interesse sobre as civilizações asiáticas; mas quase sempre, ele é contemporâneo e superficial. Alguns poucos especialistas estão se aventurando no mundo das culturas tradicionais ‘orientais’– e temo profundamente se nosso mundo universitário será consciente e responsável o bastante para aproveitar a experiência que eles estão adquirindo.
Entendo que esse breve comentário inicial sirva para contextualizar as experiências que tenho testemunhando ao tentar publicar, em português, artigos e ensaios sobre civilizações asiáticas. Passado mais de dez anos, continua sendo difícil, no Brasil, estudar e publicar –academicamente - sobre China ou Índia. Não abordo a vertente esotérica, sempre presente e prolixa, mas que não depende de um embasamento significativo. Me refiro a dificuldade, ainda reincidente, de abordar os pontos de vista ‘asiáticos’ ou ‘orientais’ nos meios de publicação ‘científicos’. Uso ‘asiáticos’ e ‘orientais’ entre aspas porque essas são redundâncias naturais, provenientes de uma cultura preconceituosa, com o qual estamos acostumados a lidar e desconstruir. O que pouco se explica, contudo, é a recusa dos meios ‘científicos’ em aceitar artigos sobre esses temas – o que reproduz, de certa forma, uma atitude de puro desconhecimento, rejeição e ignorância sobre os campos da história ‘não-ocidental’ (como se tal conceito fosse também possível e viável). Nesse texto, pois, quero analisar alguns aspectos dessas experiências com as quais um estudante sério de história ou filosofia terá que lidar. No atual contexto, claro, ensaios como esse funcionam quase como uma mensagem numa garrafa. Ainda assim, porém, impõem-se como necessário esclarecer algumas questões pertinentes ao estudo dessas civilizações – sem o que, nossa formação como especialistas em Ciências Humanas deixará de fora, praticamente, dois terços do mundo.
O desinteresse
Qual a razão da academia não se interessar, no geral, pelo estudo das culturas asiáticas? Há uma recusa, quase sistemática, em admitir ensaios e artigos sobre temas ligados a Ásia. Tais publicações só ocorrem, comumente, no meio jornalístico – sempre atual, e atento com as mudanças que estão ocorrendo no mundo. No entanto, desconhece-se o cerne dessas culturas milenares e tradicionais. Na verdade, ignora-se. Quando algo de China, Índia ou Japão é apresentado, limita-se a uma apresentação de elementos filtrados e superficiais – festas tradicionais, culinária, folguedos de artes marciais. O hiato permanece. Da Ásia econômica para a Ásia do Kung fu Panda, um extremo não explica o funcionamento do outro. Isso se deve, de fato, a nossa formação cultural, que herdou o Orientalismo do século 19 e ainda não o abandonou. Como bem explicou Edward Said – numa tese ainda não superada – o ‘Oriente’ foi construído pela Europa como uma entidade cultural amorfa, indistinta, carregada de preconceitos e impossibilidades. Veja-se: o próprio termo ‘Oriente’ designa qualquer coisa situada geograficamente de Israel até o Japão. Um olhar rápido mostra as profundas diferenças nesse amplo conjunto de civilizações. Mesmo assim, é comum ouvirmos perguntas do tipo: ‘o que o pensamento oriental diz sobre isso?’ E que respostas queremos ouvir?
A praga do Orientalismo de duzentos anos atrás permanece forte em nossa mentalidade. Ele é necessário para ‘salvaguardar’ nossa cultura. Precisamos acreditar que estudar o outro é desimportante, porque isso reforça quem somos nós. Isso nos coloca no topo de uma hierarquia imaginária de culturas. Quanto mais o outro é ‘inferior’, isso nos concede importância. Achamos incompreensível o modo de vida e a abnegação dos ‘asiáticos’. Não temos a mínima idéia do que seja uma cultura milenar, e nos jactamos de ter um modo de vida ‘ideal’. Qualquer coisa – no caso do Brasil – seria melhor do que estar na ‘Ásia’ ou na ‘África’. Bom mesmo só os Estados Unidos ou a Europa. Tão bom, que alguns brasileiros vão, inclusive, estudar história do Brasil na Europa. Obviamente, não me cabe julgar aqueles que vão realmente adquirir instrumental teórico ou documental lá fora – isso é necessário. Mas torna-se incompreensível, a meu ver, que alguém entenda como ‘estranho’ ir até a China ou Índia para fazer o mesmo. Esse é o ponto central da questão. A orientação acadêmica reforça a continuidade de um preconceito que se estrutura no currículo: não há ‘Ásia’ ou ‘Oriente’ na maior parte das universidades brasileiras. As abordagens ainda são limitadíssimas, e desestimuladas a continuar. Como isso é possível, num mundo globalizado em que o impacto asiático pulsa tão fortemente? Essa ausência se reproduz, diretamente, no modo como os estudantes de ‘humanas’ lêem as civilizações asiáticas. Há uma gradação ideológica para sua abordagem: de início, são desnecessárias; depois, passam a ser misteriosas e intrigantes; por fim, o aprofundamento as torna uma excentricidade. No fim, o especialista em ‘oriente’ torna-se tão exótico quanto o exotismo ‘inútil’ ao qual ele se dedicou. Não raro, pois, estamos absolutamente despreparados para lidar com as novas realidades teóricas, metodológicas e temáticas no campo da história e do pensamento. Resta-nos a perspectiva de trancar-se numa redoma, por meio de projetos obscuros, que visam excluir do estudo acadêmico qualquer coisa que não esteja ligado ‘a nossa história’. E como isso se reproduz em nossos problemas de formação?
A questão conceitual
Assim sendo, uma das dificuldades de publicar qualquer ensaio sobre ‘Ásia’ ou ‘Oriente’ no Brasil começa, justamente, pela total incompreensão do conceitual cultural, histórico e filosófico dessas civilizações. Grande parte dos avaliadores é incapaz de acessar realidades conceituais diferentes de suas próprias. Isso tem sido um recurso eficaz para refutar qualquer tentativa de se aproximar de temas como Índia ou China. Não se trata de uma ignorância ou incapacidade assumida – ‘não posso avaliar tal assunto’ – mas sim, de julgar irrelevante um assunto previamente desconhecido! Ironicamente, porém, o primeiro argumento é comumente utilizado, de modo hipócrita, para justificar o segundo, criando um ciclo vicioso: não há especialistas para avaliar tais textos; e conseqüentemente, sem orientações seguras, eles nunca se formarão.
Essa ‘negação’ conceitual é absurda, ainda, porque toma como inviável analisar um ‘conceitual estranho’ (como o do pensamento chinês, por exemplo), pela sua impossibilidade de compreensão ou prova. No entanto, estudantes ocidentais se debruçam sobre o mundo das idéias platônico, ou sobre o imperativo categórico kantiano, como coisas ‘reais’ e/ou ‘prováveis’? Não seria a compreensão de lógicas alternativas a nossa uma excelente e intrigante via de estudo? No entanto, o especialista em China ou Índia vez por outra é tratado com hostilidade, por conhecer um vocabulário estranho. Essa ‘estranheza’ é a primeira via de negação ao outro.
Problema da ‘adequação’ conceitual
Mesmo assim, os ‘abusados e pretensiosos’ orientalistas apresentam seus artigos para publicação, buscando caminhos numa academia respeitável e exigente. Todavia, a incompreensão do conceitual alheio leva o analista a negar seu desconhecimento, em busca de um atalho que o permita evitar um conflito com o proponente. Ele invoca, então, uma ‘inadequação’ conceitual ou temática. O artigo proposto nunca se integra ao escopo conceitual do periódico. Posso dar um exemplo pessoal: escrevi um artigo sobre a formação da iconografia budista chinesa, analisando – especificamente - uma estátua budista do período Wei (século +5) que guarda aspectos interculturais euro-asiáticos notáveis. Óbvio, esse é o meu entendimento do tema. O artigo circulou problematicamente por alguns periódicos por um problema de ‘inadequação temática’. No periódico de história, o argumento era: ‘o artigo é de arte ou filosofia’. No periódico de arte, ‘era de filosofia ou religião’. No de filosofia, ‘era de religião ou de arte’. No de religião, ‘era de filosofia, arte ou história’. Dito isso, o leitor pode ser levado a acreditar que o artigo era um desastre total. Mas, como ele será finalmente publicado (link em breve), tenho em mente que um conselho científico tanto mais preparado compreendeu a lógica interna do mesmo, e se dispôs a assumir sua publicação – uma atitude ousada no meio acadêmico. Mas qual era a dificuldade em analisá-lo? Qual a brecha apara que ele fosse tão ‘inadequado’? A leitura dos pareceres demonstra o desconhecimento e o preconceito acerca de temas presentes no mesmo: incompreensão do conceitual da arte chinesa (Arte? Filosofia? Religião?), do Budismo (Religião? Filosofia?) e mesmo dos elementos mais básicos da história chinesa. Notável mesmo, porém, é perceber considerações do gênero: ‘é possível pensar numa arte religiosa budista?’ – como se o barroco ou a arte sacra no Ocidente fossem absolutamente desprovidos de valores religiosos! Essa questão nos leva a um terceiro problema: a ‘busca conceitual dirigida’.
Busca conceitual dirigida
Um terceiro impedimento, articulado as considerações anteriores, se trata de direcionar a questão conceitual a um problema de ‘conexão’. Não raro, espera-se que um artigo sobre ‘o pensamento oriental’ ou a ‘história asiática’ verse sobre um tema ou problema calcado na ‘tradição ocidental’. Ou seja; de partida, o texto não se propõe a estudar qualquer uma das tradições asiáticas por si mesmas, mas sim, a partir de uma análise estranha a elas. Um exemplo notável disso: qualquer um que estude o pensamento chinês ficará chocado em saber o quase total desinteresse dos chineses pelo verbo ‘ser’, tão caro a origem da filosofia Greco-romana. Tal busca redundará em fracasso, se o pesquisador partir do pressuposto que o verbo ‘ser’ é fundamental para a construção do raciocínio filosófico. Essa é uma atitude comum entre pareceristas: se não há ‘no outro’ aquilo que buscamos a partir de nós mesmos, o ‘outro’ acidentalmente será desinteressante, imperfeito ou inferior. Essa lógica é evidentemente excludente, e contraria toda uma postura moderna de inclusão e reconhecimento da diferença. Mas, infelizmente, é uma salvaguarda para a submissão do ‘outro’ a um conjunto de interesses bastante específico e limitado de nossa academia.
A tradução forçada
A quarta questão, que permite limitar um pouco mais a já escassa boa vontade em compreender os ‘asiáticos’, se trata da tradução conceitual forçada. Sabemos que os conceitos são, em geral, polissêmicos – ou, podem ser interpretados de modo diferente por teorias divergentes. Qualquer curso acadêmico pressupõe, inclusive, uma discussão de visões teóricas diferentes sobre um mesmo tema (um curso de sociologia semestral pode comportar, por exemplo, a visão de quatro teorias clássicas, tais como Comte, Marx, Weber e Parsons) para ilustrar, justamente, a diversidade de interpretações e sistemas sobre a idéia de ‘sociedade’. E, no entanto, quando nos dirigimos à questão da história e do pensamento asiático, buscamos ingênua e amadoristicamente uma ‘tradução ideal’ de certos conceitos!!! Porque a ausência de consenso entre os ‘asiáticos’ é um problema? Será que buscamos o consenso entre eles porque não o temos? Ou será o consenso uma forma de ‘limitação’ do pensamento do ‘outro’? Novamente, permita-me dar um exemplo: quando tentamos traduzir a palavra Tian, em chinês, de imediato podemos afirmar que ela significa ‘Céu’ (pois, é o que ela representa). Todavia, dependendo do contexto, ela pode significar ‘dia’. Na teoria confucionista, ‘Céu’ é utilizado para designar o conjunto de leis ecológicas (ou ‘Natureza’); na teoria caminhante (daoísta), ‘Céu’ significa a contraparte natural da ‘Terra’ – e para os caminhantes, a ‘Terra’ é o plano em que vivemos, e por isso, talvez mais importante do que o próprio ‘Céu’. Por fim, os budistas usariam o ‘Céu’ como um conceito religioso transcendental (parecido com o ‘Céu’ dos cristãos). Essa polissemia permitiu que ‘Céu’, portanto, fosse usado como termo (ou conceito) em análises científicas, filosóficas, religiosas e cotidianas. No contexto, pois, a palavra adquire uma carga específica. Qualquer bom tradutor sabe disso. Mas no caso específico dos ‘asiáticos’, essa se torna uma eficiente artimanha para justificar a ‘imprecisão’ de suas formas de pensamento – e conseqüentemente, a ‘incompreensão’ que ela gera nos avaliadores. É ‘difícil e trabalhoso’ lidar com tradições incapazes de ‘construir conceitos sólidos’. Esse subterfúgio malicioso é extremamente eficiente, ainda mais em periódicos que não permitem refutações aos pareceristas.
Divulgar ou Publicar?
Por fim, precisamos destacar esse último problema, tão sério ao estudo do ‘Oriente’, que constitui na difusão dos conhecimentos construídos acerca das civilizações asiáticas. Usei duas palavras sinônimas para destacar uma diferença de perspectiva: ‘divulgar’ seria a produção de textos vulgarizadores, de acesso ao público comum, com fim de promover temáticas históricas e culturais alternativas; já ‘publicar’ se remete, aqui, a produção de textos científicos, feitos dentro do ambiente acadêmico, para um público restrito.
Desde já, sou obrigado a questionar se a boa vulgarização do conhecimento – a ‘divulgação’ – pressupõe a ausência de pesquisa. São trabalhos cuja temática é reduzida, o escopo focado, e a linguagem acessível. Eles servem para formar um cabedal de conhecimentos gerais mais amplo, e estando disponíveis, ajudam a construir uma sociedade mais informada, sólida e consciente. No entanto, a ‘divulgação’ é muito mal vista pela academia. Ela é tida como algo ‘menor’, necessariamente ‘inferior’ aos textos ‘publicados’ na academia.
Ora, as ‘publicações’ são outra forma de produção científica, focadas justamente na difusão de um conhecimento técnico e específico, fundamental para o desenvolvimento da academia – mas inútil, se não for vulgarizado ao público comum. Uma analogia simples nos explica isso: de que adianta um medicamento moderno e eficiente se ele não for distribuído? As ciências humanas não seriam assim? Anos de conhecimento são transformados em pílulas, que administradas cotidianamente, ajudam a curar os males – ou, anos de pesquisa são versados em pequenos textos, que aos poucos nos curariam do nosso desconhecimento. Muitas vezes, não compreendemos a lógica subjacente a produção do texto vulgarizado (nossa ‘pílula’), mas ele nos conduz a formação de uma saúde intelectual mais efetiva, tolerante, diversa e abrangente – e que por vezes, pode redundar numa saudável curiosidade.
Todavia, a academia tende a repudiar temáticas alternativas – como o ‘Oriente’ – e menosprezar a própria divulgação dos saberes. Como livrar-se, pois, dessa armadilha logocêntrica?
Conclusão
Voltamos, pois, ao início. A constatação desses problemas, ao longo de mais de uma década, não pode se impor em definitivo como uma barreira a produção do conhecimento. Para todo esse quadro pouco animador, é preciso dizer que alguns poucos veículos tem se aberto a novas temáticas e campos de saber – incluso, aí, o campo das civilizações asiáticas.
Por outro lado, não podemos dispensar os critérios e métodos ‘ocidentais’ – o que seria um erro tão grave quanto aceitar qualquer texto sobre Ásia sem referências. É necessário flexibilizar, fazer dialogar conceitos e idéias – como propôs Raimon Panikkar – de modo a criar uma verdadeira cultura de entendimento. É válido, apenas para citar um exemplo, estudar o Hinduísmo ou o Taoísmo a partir de uma ‘perspectiva religiosa’ desde que se admita, pela investigação de suas lógicas internas, que elas podem ter características e conceitos que escapam aos nossos parâmetros tradicionais de análise. Esse tipo de desafio é que nos permite, inclusive, estender, reformular e aprimorar nossas ciências humanas. Somente quando nos obrigamos a fazer dialogar nossos saberes, é que evidenciamos suas falhas e incompletudes; e delas, surgem os aperfeiçoamentos que dinamizam a sobrevivência do pensamento.
Os pontos de atrito e conflito são inúmeros, e continuarão a existir enquanto persistir esse arcaico orientalismo ideológico que compartilhamos. Contudo, o mundo atual exige outro nível de integração que não podemos ignorar. O diálogo intercultural é uma das pautas contemporâneas – em nível interno nas sociedades pluriétnicas, e em nível internacional, na busca de uma nova ordem mundial que harmonize a vasta plêiade de culturas. É urgente a necessidade de ler, produzir e divulgar/publicar material qualificado, em nossos meios, sobre tais questões. E dessa urgência, que porventura não permita atalhos, que talvez possamos modificar o difícil quadro dos ‘estudos orientais’ no Brasil.
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