A pergunta do título deste post é uma dúvida histórica que com frequência se ouve: ao encontrar o que viria a ser o Brasil em abril de 1500, Cabral sabia antecipadamente o que estava fazendo ou veio parar aqui por acidente?
Um dos principais historiadores portugueses da atualidade, Luís Filipe Thomaz, escreveu um artigo com sua contribuição para a questão. O resumo dá uma boa ideia de seu posicionamento:
O grande projeto de d. Manuel (r. 1495-1521) era, na sua essência, um projeto de
cruzada, visando o ataque ao Império Mameluco pelo mar Roxo e a recuperação
de Jerusalém. O Brasil não podia representar nele senão o modesto papel de escala
técnica para as naus da Índia. Embora haja múltiplos indícios de que, pelo menos
ca. 1492, conhecia-se já vagamente a existência de terras naquela zona do globo
e de que o desvio de Pedro Álvares Cabral para ocidente foi intencional, este não
parece imputável a instruções secretas de d. Manuel, mas antes a manobras da corte,
majoritariamente adversa aos planos de cruzada do soberano.
Primeiro fato: o continente americano estava sendo descoberto aos poucos e ninguém conhecia sua extensão exata em 1500. Cada nova expedição castelhana ou portuguesa trazia notícias de mais um pedaço de terra - uma ilha, um pedaço de continente? - e ainda não se tinha certeza de como as peças se encaixavam no mapa. Em todo caso, era razoável concluir que devia existir alguma terra na área dada aos portugueses pelo Tratado de Tordesilhas:
Eram certamente essas tais terras de cuja existência suspeitava d. João que
apareciam debuxadas, não sabemos com que grau de verossimilhança, no mapa
de Pero Vaz Bisagudo a que se refere mestre João. O esboço era sem dúvida
conjetural, pois não podia haver delas senão uma vaga ideia. Nem sequer se
devia saber ao certo se eram ilhas, como criam os habitantes de Santiago, se
terra firme, como afirmava d. João II. A dúvida manter-se-ia mesmo depois do
descobrimento cabralino: tanto Pero Vaz de Caminha como mestre João opinam
que se trataria de ilha ou arquipélago; a continentalidade da terra descoberta
só começa a ser decididamente afirmada em documentos de 1501: a relação
do crético à senhoria de Veneza, a carta de Vespúcio escrita do Cabo Verde e,
embora com menos convicção, a chamada Relação do piloto anónimo. O crético
é assaz peremptório: “esta terra é terra firme, porque viram mais de duas mil
milhas de costa e não lhe encontraram fim”. Vespúcio vai mais longe ainda,
identificando o continente tocado por Cabral com o que ele próprio costeara no
ano precedente ao serviço de Castela, integrado, como se sabe, na expedição
de Hojeda. O mais provável é que, como afirma Gaspar Correia, o navio
de Gaspar de Lemos, mandado a Lisboa com a nova do achamento do Brasil,
mesmo sem efetuar novos desembarques, o tenha costeado de Porto Seguro
para norte, apercebendo-se então da sua continentalidade.
Segundo fato: a rota seguida por Cabral é um tanto quanto peculiar. Segundo os entendidos em navegação e correntes marítimas, não haveria muita chance de ele ter sido desviado de rumo acidentalmente, por uma tempestade ou coisa do tipo.
É difícil abstrair de tal pano de fundo ao considerar a rota seguida por Cabral.
Já no século XVI, se afigurava insólita, levando vários cronistas a imaginar uma
tempestade que, no Atlântico sul, o teria arrastado para sueste, mas que as fontes
coevas mais fidedignas, como Caminha, mestre João e a primeira edição de
Castanheda, não referem nem deixam entrever; ou então, como imagina António
Galvão, que a armada tivesse perdido a rota, ao procurar em vão a nau que dela
se apartara em Cabo Verde, o que tampouco é exato. O que mais espanta é que
Cabral tivesse aterrado no Brasil tanto a ocidente e tanto a sul, quase à latitude
em que, na rota mais expedita para a Índia, devia começar a inflectir para leste.
Desde o século passado que os marinheiros e geógrafos que estudaram o
percurso de Cabral, como Baldaque da Silva, Gago Coutinho e o almirante
Fonseca, foram unânimes em mostrar, com argumentos que seria ocioso repetir
aqui, que no condicionalismo físico de ventos e correntes do Atlântico meridional
nada implicava tamanho bordo para sueste numa viagem em direção ao Cabo – pelo que parece impor-se a conclusão de que o bordo foi intencional.
Problema: se foi intencional, de quem veio a ideia? A resposta mais óbvia: do rei d. Manuel de Portugal, mentor da expedição. Parece uma conclusão lógica, mas levanta mais dificuldades do que explica.
Primeiro obstáculo: as instruções dadas pelo rei a Cabral não mencionam nenhum desvio para oeste a fim de encontrar novas terras. Seria possível que ele tivesse dado instruções secretas nesse sentido, o que nos leva ao
Segundo obstáculo: a frota comandada por Cabral era de grande porte, um investimento caríssimo destinado a visitar a Índia e ganhar apoio dos supostos cristãos indianos para os projetos expansionistas do rei. Qual o sentido de arriscar um investimento desses para fazer o que um único navio poderia fazer? Se a intenção era demarcar as novas terras contra avanços espanhóis, um navio, explorando a costa norte do continente (cuja existência já se conhecia vagamente) no sentido leste-oeste até chegar à linha de Tordesilhas, seria a solução mais conveniente.
Por parte de Portugal impunha-se, portanto, a vigilância. Não era, contudo,
a costa norte-sul do Brasil que importava vigiar, mas a costa leste-oeste do Rio
Grande do Norte ao Maranhão. A solução mais lógica seria despachar imediatamente
de Lisboa uma caravela a tomar posse das terras reservadas a Portugal pelo
tratado e delimitar a raia; mas, nesse caso, o objetivo seria a costa setentrional do
Brasil, onde, devido ao regime de ventos e correntes, jamais se poderia passar
em viagem para a Índia, e não o sul baiano a que Cabral aportou.
Não é de crer, por conseguinte, que no momento de despachar para a Índia
seu segundo capitão, o rei, que com tamanho esforço prosseguia, em luta surda
com a corte, a sua política oriental, quisesse pôr em risco o seu objetivo central
para proceder ao reconhecimento de um território cuja posse ficara assegurada
já em Tordesilhas, e que uma simples caravela enviada de Lisboa poderia
facilmente explorar. Desviar da sua rota uma frota inteira para representar na
costa sul-americana a farsa do descobrimento ocasional era expô-la inutilmente
aos riscos de encalhar nos recifes coralinos que acompanham quase todas as
costas tropicais, de incorrer em recontros com nativos, de perder tempo e dobrar
o Cabo no pino do inverno, quando são mais temíveis os ventos de oeste, de
falhar no Índico a monção mais favorável e ter de invernar na África Oriental,
como dois anos antes ia sucedendo ao Gama.
Se havia a certeza de que essas terras do sudoeste do Atlântico recaíam
dentro da demarcação portuguesa, a farsa era de todo inútil. Se, pelo contrário,
havia dúvidas quanto à sua situação em relação à raia de Tordesilhas, uma caravela
isolada poderia efetuar as observações necessárias e as medições que se
impunham muito mais discretamente que uma armada imponente em que boa
parte da Europa tinha os olhos postos.
Terceiro obstáculo: qual o motivo para o rei dar ordens secretas? Os espanhóis não teriam o que protestar se fossem encontradas terras na área portuguesa, e os nobres portugueses estavam mais interessados que o rei no Atlântico.
No caso de Pedro Álvares Cabral, por que sigilo? Por via da oposição interna?
Mas essa estava, segundo tudo leva a crer, muito mais interessada que
d. Manuel no Atlântico; nada conviria mais ao soberano para aquietá-la do que
acenar-lhe com compensações, significando-lhe que era também sua intenção
mandar descobrir terra em que em breve poderiam mercadejar a seu talante.
Quanto a Castela, não se compreende porque precisaria o soberano português
de mandar secretamente descobrir o que pelo Tratado de Tordesilhas lhe cabia
manifestamente em sorte. Se, em 1493, quando as negociações estavam ainda
em curso, ninguém guardara o segredo e as suspeitas de d. João II chegaram
ao conhecimento dos Reis Católicos, para que o sigilo agora que tudo ficara
regulado e o filho de d. Manuel era o herdeiro jurado das três coroas?
[...]
De qualquer modo, entre a redação das instruções para Cabral, que não deve
ter tido lugar antes da sua nomeação para capitão da frota, a 15 de fevereiro, e a
sua partida efetiva, a 9 de março, nenhum concorrente externo teria tempo para
se antecipar a Portugal e fincar pé no Brasil. Não parece pois haver qualquer
razão para que d. Manuel desse a Pedro Álvares Cabral instruções secretas
contraditórias das que lhe dava por escrito.
Quarto obstáculo: se as terras americanas fossem importantes para o rei a ponto de merecerem ordens secretas para um desvio da fronta, presumivelmente d. Manuel estaria interessado em contar a todo o mundo sua descoberta, a fim de legitimar sua posse e exaltar as façanhas portuguesas. Mas não foi o que ele fez - na verdade, a descoberta de Cabral pouco interessou ao rei de Portugal...
Seja como for, se foi este quem montou toda aquela encenação, pouco partido
tirou dela. Ao contrário do que se passara no ano anterior com o regresso
de Vasco da Gama, e do que se passaria mais tarde com as sucessivas façanhas
dos portugueses na Índia, não há qualquer prova documental de que d. Manuel
tenha participado o achamento do Brasil aos concelhos, mandado celebrar ações
de graças, notificado a Santa Sé, ou comunicado aos sogros o feito. Só a estes
o viria a participar mais tarde, após o regresso de Cabral da Índia, intercalando
na relação do que no Malabar se passara, que era o que deveras lhe importava
e constituía o escopo da missiva, um curto parágrafo sobre o achamento do
Brasil, nitidamente inspirado na carta de Pero Vaz de Caminha.
Se o achamento do Brasil não foi por ordens reais, mesmo assim pode ter sido proposital. A explicação mais simples é que Cabral tenha desviado a frota a fim de reabastecê-la nessas terras de cuja existência se suspeitava:
O fato de o desvio da frota de Cabral para sudoeste não parecer imputável a
instruções d’el-rei não invalida que possa ter sido intencional. Pode, por exemplo,
ter tido uma causa assaz prosaica. A armada não parara em Cabo Verde
para fazer aguada, como previam as instruções dadas por Vasco da Gama. Não
é impossível que, passado já o arquipélago, tenham se arrependido, receando
que lhes viesse a faltar água e lenha. Sabendo que algures, a ocidente, se dizia
à boca cheia haver terras emersas, podem ter rumado para lá, na esperança de aí
se poderem aprovisionar de madeira e água doce – como de fato veio a suceder
e, na esteira de Caminha, d. Manuel refere aos Reis Católicos. É a mais simples
e quiçá a mais verossímil das suposições.
Thomaz levanta outra hipótese, um pouco mais conspiratória: o desvio teria se dado por iniciativa de capitães da frota, mais interessados no comércio do Atlântico (que prosperava na costa africana) que nos projetos expansionistas reais no Mar Vermelho.
Aos opositores da política indiana do Venturoso conviria, por qualquer meio,
desviar do mar Roxo as atenções do poder e os cabedais, energias e recursos
humanos da nação, oferecendo-lhes no Atlântico sul um campo alternativo de
expansão. Extrapolando para inícios do século XVI o que se passaria em seus
finais e na centúria seguinte, podemos, por outro lado, presumir que a média
burguesia nacional, mormente a dos portos secundários, que não dispunha de
cabedais suficientes para se empenhar no trato da longa rota do Cabo, anelaria
por achar outros mercados, mais vizinhos.
Um pouco improvável, talvez, mas interessante ainda assim. O que não muda é que, tenha sido por acidente, ordens do rei, parada para reabastecimento ou foco de expansão no Atlântico sul, encontrar as futuras terras brasileiras foi muito menos interessante para Portugal do que o comércio e conquistas na Índia, uma das regiões mais ricas do mundo em 1500. O Brasil permaneceu pouco explorado por cerca de 30 anos, e só se tornou a grande prioridade portuguesa quando as possessões indianas entraram em declínio pela competição com outras potências europeias no século 17. Nossa existência pressupõe não só Portugal, mas também a Índia. Mesmo assim, parece que só nos damos ao trabalho de aprender um dos lados dessa história. Pouco se diz das grandes rotas de comércio no Oceano Índico, por onde passavam muito mais mercadorias do que as especiarias de que tanto se fala, e que justificavam que os europeus atravessassem meio mundo a navio apenas para tirar sua fatia dos lucros. Mas isso fica para outra vez....
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