janeiro 31, 2012

54. Moedas romanas?

Hoje, um exercício de comparação entre o que sai na mídia sobre uma descoberta arqueológica e a opinião dos especialistas. Exemplo de caso divertido: uma moeda ou ficha romana com uma imagem erótica.

Primeira versão: a midiática, vinda do Estadão.

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Moeda encontrada no Tâmisa era usada como pagamento em bordéis do século 1

Apesar da antiguidade, o objeto reproduz bastante nitidamente a imagem de uma mulher deitada em um sofá ao lado de uma figura masculina, aparentemente durante o ato sexual




A moeda de bronze do século 1 encontrada há mais de um ano nas proximidades do rio Tâmisa era, segundo os especialistas, uma forma de pagamento nos bordéis do Império Romano, informa o Museu de Londres.
Peça foi encontrada na margem do Tâmisa no outono de 2010 - Museu de Londres/AP
Museu de Londres/AP
Peça foi encontrada na margem do Tâmisa no outono de 2010


A peça tem um tamanho similar ao de uma moeda de dois euros e em uma de suas faces é possível ver um casal, enquanto na outra aparece inscrito o número 15 em algarismos romanos.

Apesar de sua antiguidade, reproduz bastante nitidamente a imagem de uma mulher deitada em um sofá ao lado de uma figura masculina, aparentemente durante um ato sexual.

Os analistas do Museu de Londres, onde está sendo exibida a moeda, acreditam que este tipo de objeto era trocado por sexo e que o número que aparece no reverso da moeda é o preço do serviço prestado.

A curadora do museu, Caroline McDonald, afirmou que se trata de um objeto arqueológico "perfeito, sexy e provocativo", embora demonstre que a vida de uma escrava romana não era muito feliz.

"Este tipo de objeto pode nos ajudar a gerar debates sobre temas relevantes para a cidade e seus visitantes", continuou.

A peça foi encontrada na margem do Tâmisa no outono de 2010, por um homem com um detector de metais.

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Deixando de lado o curioso eufemismo de a mulher estar deitada "ao lado" do homem, logo fica claro que, segundo a reportagem, a função da moeda era bem clara: uma ficha usada em bordéis.

Agora, a segunda versão, saída do blog de Mary Beard, professora de clássicos (leia-se: Grécia e Roma antigas) em Cambridge. Apenas em inglês, lamento:

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A Roman brothel token?


I was hoping to keep out of the story about the "Roman brothel token" found by a metal detectorist near Putney Bridge and now on display at the Museum of London. But I think someone had better give a different version from the torrent of lurid stuff now pouring out about the sex-life of Roman London.
The object in question is a small bronze "coin" -- with a scene of sex on one side and a the Roman numeral XIIII on the other. Assuming that it is genuine (and there are quite a few fakes of these circulating and this one was not actually found in an archaeological context), then it is what archaeologists term a "spintria". This is a Latin word for male prostitute... but it is an entirely modern practice to apply it to these little objects; we haven't got the foggiest clue what the Romans called them... or (despite what you read) what they used them for. Quite a few have been found across the Roman world (there's another on the right).
The favourite idea circulating about this recent discovery is that it was part of the highly developed Roman brothel economy. Perhaps you handed over 14 asses (the coin not the animal, I mean), got the token and then went and redeemed it at one of the local brothels (a bit like a book token). Or maybe the sexual position depicted on the token was what you had paid your 14 asses for (shades here of the tour guides' explanations for the paintings of the different sexual positions depicted on the walls of the brothel at Pompeii ... a kind of visual menu for those who couldnt ask for it in Latin. Errr.. come again?)
Now, as there is no evidence for these things at all, no-one could actually disprove that. But remember that there is no Roman mention of such things, none have been found in any place that has been identified as a "brothel" . . .  and just think of the kind of infrastructure of the ancient "brothel industry" that this kind of internal currency would imply. (Let's face it, most sex for money in the ancient world  -- like now --happened at street corners, under bridges, after closing time at the bar... NOT in designated "brothels" . . . )
So what is a more likely explanation?
Well, first remember that just because something has a sex scene on it doesn't mean it was used for sex. That assumption has led to the discovery of 80 odd "brothels" in Pompeii (ie any room with a scene of sex on the walls....). But look at the Suburban Baths at Pompeii, there different sex scenes seem just to have been used as aide memoires for the different "lockers" in the changing room.
Almost certainly these were tokens whose main function was the numeral, and the sex scene on the back was 'decoration". One possibility would be an amphitheatre token, and the XIIII would indicate which entrance you were to use. But I doubt that any amphitheatre in Britain was so big as to need that kind of crowd management (though of course, being found by the Thames, this thing could actually have been brought back from Italy by some eighteenth century traveller who just accidentally dropped it by Putney  Bridge on his way home).
More likely, if you ask me (and as the curator at the Museum of London concedes it might be so), is that it is a gaming token, for one of the many Roman board games... whose rules and customs were anyway shot through with sex (the best throw of the Roman dice was called a "Venus throw"). This belonged, in other words, on a board in a Roman bar, not in a brothel.
The trouble is that we just want the Romans to take us into the world of their brothels, and we want vicariously to enjoy their wicked sex lives. Though, in this case, there has been a politically correct, early 21st century twist added to the tale. After ogling at the Romans for a bit, many of the eager journalists (prompted by the Museum of London) have finally chosen to spare half a thought for the victims of the ancient sex industry. Don't forget, insisted the curator (correctly), that many prostitutes would be slaves. "It has resonance with modern-day London because people are still being sold into the sex trade."
True and terrible, but in most reports it only added to the prurient edge of the find.

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Evidência de que a moeda/ficha esteja relacionada à prostituição antiga: exatamente zero. Nenhum outro exemplar foi encontrado num bordel, como seria de esperar se fosse o caso.
Evidência para qualquer outro uso em particular: também zero. Como Beard disse, "não temos a mínima ideia de como os romanos chamavam esses objetos ou para que eram usados".
Mas, como está firme em nossas cabeças o estereótipo dos romanos depravados e libertinos, a versão divulgada para o grande público é a que todos esperam ouvir: ficha de bordel. Mesmo porque um objeto de função desconhecida rende uma notícia muito menos interessante...
A possibilidade que Mary Beard sugere, que fosse uma ficha de jogo, também não tem como ser provada ou desprovada por enquanto, mas é igualmente provável.

janeiro 28, 2012

53. Genocídio armênio

Um espectro ronda a Turquia, e se chama genocídio armênio.

Em 1915, o então Império Otomano estava envolvido na I Guerra Mundial, ao lado da Alemanha e Áustria-Hungria. Um de seus muitos problemas: os russos ao norte. Surgiram dúvidas quanto à lealdade dos armênios, uma etnia cristã dividida entre os dois lados da fronteira otomano-russa. O governo otomano expediu ordens para a deportação dos armênios para longe da fronteira.

Aqui, as opiniões se dividem. O que os armênios, e a maior parte dos historiadores, diz a respeito é que as "deportações" eram apenas uma máscara para uma política oficial de extermínio sistemático, provocando a morte de cerca de 1,5 milhão de armênios.
Pela versão turca, praticamente só aceita pelos próprios turcos, realmente muitos armênios morreram, assim como muitos turcos, árabes e praticamente todos os povos existentes no império, em decorrência da situação difícil que o mesmo enfrentava. As mortes poderiam ser uma tragédia, mas não seriam um genocídio por não serem deliberadas.

A Turquia, além de não reconhecer a existência de um genocídio, criminaliza qualquer afirmação nesse sentido como um crime contra a "turquicidade".

Nesta semana, a França fez o oposto: criminalizou a negação do genocídio. Desnecessário dizer que o governo turco não ficou feliz com a nova lei francesa e ameaça com retaliações diplomáticas.

O genocídio armênio não é o único a ganhar essa "proteção especial" dos franceses, que também criminalizam a negação do holocausto judeu.

Embora os franceses estejam com a verdade dos fatos a seu lado, não sou particularmente a favor de usar a lei para silenciar a discussão, por parte de qualquer dos lados. Mesmo porque a lista de possíveis genocídios que poderiam ser reconhecidos sob pena de cadeia poderia ir muito longe. Um senador francês que votou contra a lei, Jacques Mézard, tem uma argumentação interessante (traduzida desta reportagem):

"Ela [a lei] põe em questão a pesquisa histórica e científica. Amanhã haverá a questão de um genocídio da Vendeia?", perguntou ele, referindo-se a uma revolta contra o governo revolucionário francês em 1793. "Vamos colocar a ferros os espanhóis e os Estados Unidos pelo massacre de nativos americanos? Devemos rejeitar esse texto e deixá-lo para os livros de história".

Nada a dizer sobre o Brasil, senador Mézard?

janeiro 18, 2012

52. Protesto da wikipedia e história da internet

Segue uma notícia do Estadão cujo conteúdo deve ser bem conhecido a essa altura - a wikipedia em inglês está fazendo um protesto de um dia contra projetos de lei americanos que, se aprovados, prometem tornar muito menos livre a internet, tudo sob a justificativa de preservar os direitos autorais. Como a presença americana na rede é forte, o impacto seria sentido em todo o mundo.

Derrotar esses projetos é uma causa louvável, mas o que me fez começar este post foi circular pela internet e ver que muitos sites - revistas, quadrinhos, blogs acadêmicos, de tudo um pouco - estão participando dos protestos. Precisamos de uma história da internet. Não um amontoado de datas e avanços técnicos da Arpanet até a Web 2.0, e sim uma pesquisa que mostre como o que no início era uma redezinha militar americana cresceu e tornou-se parte tão integrante de nossas vidas que os protestos, assim como os efeitos dos projetos, estão sendo bastante discutidos fora dos Estados Unidos.

Quem se habilitar a escrever esse best-seller em potencial, espero que faça a gentileza de mencionar meu nome nos agradecimentos.


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Wikipedia faz protesto contra lei antipirataria

Se aprovada, a lei permitiria que os tribunais ordenassem que sites de busca restrinjam certos resultados



NOVA YORK - A enciclopédia virtual Wikipedia e outros sites populares converteram suas páginas em banners de protesto virtual, no início desta quarta-feira, como parte de um esforço para barrar uma legislação antipirataria que está sendo avaliada pelo Congresso dos Estados Unidos. O site de notícias Huffington Post, por exemplo, trocou a tradicional foto de sua chamada principal por uma extensa caixa preta, que direciona para uma matéria sobre o tema.
A Wikipedia, décimo site mais popular nos EUA, paralisou nesta quarta-feira a maior parte de seus serviços em língua inglesa, substituindo por uma página branca e cinza com seu símbolo em negro. "Imaginem um mundo sem o conhecimento livre", afirma um texto no site. Segundo a Wikipedia, "neste momento, o Congresso dos EUA estão considerando legislação que poderia prejudicar fatalmente a internet livre e aberta". Conhecida como Lei de Proteção à Propriedade Intelectual (Sopa, na sigla em inglês), a lei permitiria que o Departamento de Justiça busque os tribunais para ordenar que sites de busca restrinjam certos resultados dos sites, entre outras medidas antipirataria.
"A lei é mal construída, muito perigosa e não lida na verdade com o problema real da pirataria", afirmou Jimmy Wales, cofundador da Wikipedia, em entrevista. "A política para a internet não deveria ser ditada por Hollywood."
A Wikipedia, comandada pela entidade sem fins lucrativos Wikimedia Foundation, deve ser acompanhada nesse dia de protesto por milhares de sites menores. O gigante Google também lembrou o caso. Mesmo sem fechar seu site, o Google cobriu por volta da meia-noite a maior parte do logo em sua página inicial dos EUA com uma caixa preta, acrescentando um link para que os usuários digam aos congressistas para eles não censurarem a web. "Como muitas empresas e usuários da internet, nos opomos a esses projetos de lei", disse um porta-voz do Google.
Wales disse que os congressistas apenas ouviram até agora lobistas profissionais e Hollywood para a elaboração da lei. Ele lembrou que é preciso ouvir sobre como as pessoas usam a internet e se notar os motivos pelos quais ela deveria continuar da forma que é. Segundo ele, é difícil prever como a Wikipedia seria afetada pela nova legislação. "Nós poderíamos ser barrados de ter links em sites que são considerados como sites ilegais no exterior, e isso gera muitas questões obviamente muito profundas relativas à primeira emenda", apontou. A primeira emenda da Constituição dos EUA trata da liberdade de expressão.
O blecaute na Wikipedia afeta o site em inglês para usuários por todo o mundo, mas as outras versões em outras línguas e as versões formatadas para celulares continuam a operar. As informações são da Dow Jones.

51. Historiadores versus juízes, round 2

A briga de nossa associação contra a destruição indiscriminada de processos antigos por parte do Judiciário continua, e o alvo da vez é o STF.
O título do texto abaixo, apesar de provocador, não deixa de ser a pura verdade, e teríamos muito menos problemas se os juízes, desembargadores e ministros soubessem disso: com poucas exceções, eles não sabem história, como não sabem e não precisam saber física, geologia, arquitetura e mil outras coisas. Mas todo mundo se acha um pouco historiador, como se o que se aprende na escola fosse mais que um resumo mal digerido e obsoleto de alguns dos produtos da ciência histórica, ao invés da ciência em si, com seus métodos e discussões próprios. E, pela minha experiência, os juristas são mais propensos que a maioria a cair nesse erro. Não é como se uma cadeira mal dada de História do Direito e resumos de Beccaria, Rousseau, Montesquieu e Kant tornassem alguém um especialista em história...

Enfim, a democracia depende de as autoridades levarem algumas patadas não muito sutis de vez em quando para lembrarem dos seus limites, e concordo plenamente com esta em particular. O original do texto pode ser conferido no site da ANPUH, mas coloquei uma cópia aqui para facilitar a vida de todos:

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O STF NÃO SABE O QUE É HISTÓRIA

O Ministro Cezar Peluso, presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), promulgou, em 29 de novembro de 2011, a Resolução No 474 que “estabelece critérios para atribuição de relevância e de valor histórico aos processos e demais documentos do Supremo Tribunal Federal”. O documento causa perplexidade aos historiadores e a todos aqueles que, minimamente, tem acompanhado o desenvolvimento da historiografia contemporânea, em especial por duas razões: por procurar estabelecer “por decreto” o que é ou não histórico e por apontar como subsídio para essa classificação critérios considerados ultrapassados há, pelo menos, um século. Por esse motivo, a Associação Nacional de História (ANPUH), entidade que congrega os profissionais de história atuantes no ensino, na pesquisa e nas entidades ligadas ao patrimônio histórico-cultural, não poderia deixar de trazer a público a sua inconformidade com a referida Resolução.
Apesar de seus precursores mais remotos (como os gregos Heródoto e Tucídides), o conhecimento histórico só se estabeleceu como disciplina autônoma e com pretensões científicas no século XIX, acompanhando o processo de surgimento e/ou consolidação dos Estados nacionais. Naquele momento era importante alicerçar em uma narrativa fidedigna, ancorada em provas documentais, a história desses Estados, comprovando sua existência ao longo do tempo e reforçando os laços de identidade entre seus habitantes, com base em uma presumida origem comum. Não é à toa que, justamente nesse período, surgiram os Arquivos Nacionais, inclusive no Brasil, como forma de reunir e conservar os documentos oficiais que dissessem respeito à “biografia” das jovens nações. Muitos historiadores, por seu turno, voltavam sua atenção aos ditos “acontecimentos consagrados”, aos “grandes personagens”, aos “fatos marcantes” da história de seus países; acontecimentos, personagens e fatos esses, diga-se de passagem, em geral ligados às elites políticas, econômicas, culturais, militares e intelectuais a quem se atribuía o “fazer da História”.
Ora, desde ao menos o final da década de 1920, tal visão do que é ou não histórico foi fortemente contestada pelas principais correntes contemporâneas da historiografia por seu caráter limitado e elitista. Desde então, se sabe que nenhum documento possui “relevância” ou “valor” histórico em si, mas somente a partir das perguntas que o historiador dirige ao passado. Por exemplo: por muito tempo, não se deu valor às experiências das mulheres na história, ou apenas quando elas participavam de espaços tradicionalmente masculinos como a política e a guerra. Hoje uma das áreas mais desenvolvidas da historiografia brasileira e mundial é, justamente, a história das mulheres, que, para se desenvolver, precisou se utilizar de documentos antes considerados “não históricos” (talvez por envolver mulheres pouco famosas), como registros policiais e documentos judiciais referentes a, por exemplo, violência doméstica, guarda de crianças, brigas entre vizinhos, etc. Neste sentido, um exemplo entre muitos outros é o livro da consagrada historiadora Maria Odila Leite da Silva Dias, “Quotidiano e poder no século XIX”, cuja leitura indicamos aos ministros do STF, que apresenta as lutas femininas em São Paulo naquele período e as estratégias de sobrevivência de mulheres pobres, talvez “sem valor histórico” na visão desses magistrados, como lavadeiras, quitandeiras, escravas, forras, entre outras.
Enfim, no âmbito do conhecimento histórico contemporâneo, é realmente um equívoco legislar sobre que documentos são históricos ou não, pois, em primeiro lugar, a própria noção do que é histórico também é histórica, variando no tempo e em diferentes sociedades, e, em segundo lugar, porque, potencialmente, todo vestígio do passado pode ser uma fonte histórica, dependendo do que queremos conhecer desse passado. O desconhecimento destas idéias pelo órgão superior de nosso Poder Judiciário é estarrecedor.
Também causa espanto a nomeação, pela Resolução, de quem pode atribuir relevância histórica aos documentos do Supremo e quais são os critérios para tal atribuição. Não se menciona nunca a participação de historiadores nesse processo; profissionais que, ao longo de sua formação, espera-se, tomam conhecimento dos debates teóricos e metodológicos antes esboçados. A “atribuição de relevância” caberia, segundo o documento, ao Ministro-relator do processo, ao Presidente do STF, ao Diretor de Secretaria (quando se tratar de processo administrativo) e ao Presidente da Comissão Permanente de Avaliação de Documentos – CPAD (quando se tratar de processo arquivado e encaminhado à deliberação da Comissão), ou seja, profissionais que certamente são extremamente qualificados no métier jurídico, mas que também certamente não conhecem, nem têm obrigação de conhecer, as metodologias da pesquisa histórica e as discussões atuais da historiografia. Não se quer, com isso, criar uma “reserva de autoridade” para os historiadores na atribuição de valor histórico aos documentos. Ao contrário, é saudável e democrático tal que atribuição seja fruto de múltiplos olhares e, no caso do Poder Judiciário, inclua a participação daqueles que o constituem, ou seja, magistrados e servidores. Porém, não se pode liminar essa tarefa a eles, desconsiderando o saber específico dos profissionais de História. Afinal, sem o olhar “treinado” do historiador, como será possível avaliar os processos “cujo assunto seja considerado de grande valor para a sociedade e para o STF”, conforme quer a Recomendação? Se cabe aos magistrados determinarem o valor histórico de documentos, será que um dia os historiadores serão chamados a julgar nos tribunais?
Posteriormente afirma-se que a “Coordenadoria de Gestão Documental ou Memória Institucional – CDOC poderá encaminhar sugestão à CPAD para atribuição de relevância em processo enviado para arquivamento definitivo”, mas não se informa que profissionais compõem essa comissão. Estarão historiadores entre eles? E mais, caso haja historiadores, eles terão alguma autonomia para fazer valer o seu saber específico ou terão apenas que respaldar, com base, talvez, no medo de perderem funções gratificadas, decisões tomadas por profissionais de outra área? Sobre isso, diz-se no máximo que a CPDA “PODERÁ *grifo meu] convocar servidores e profissionais especializados [quais?] para auxiliar nos trabalhos de seleção dos processos e demais documentos de potencial histórico”. Que grande concessão! Talvez assim os historiadores possam ser ouvidos! Mas certamente de forma tímida, pois a eles cabe, no máximo, auxiliar quando os doutos magistrados não tiverem certeza se determinado documento é ou não histórico.
Quando a Recomendação lista critérios para determinar documentos “de potencial histórico”, a desatualização de quem a elaborou torna-se ainda mais flagrante. Fala-se então de acontecimentos, fatos e situações que tiveram “grande repercussão nos meios de comunicação”, como se os fatos com pouca repercussão não possam se revelar, no futuro, extremamente importantes historicamente; e em
documentos referentes “à nomeação, posse, exercício e atuação dos ministros do STF” e “personalidades de renome nacional e internacional”, numa volta espetacular ao século XIX e sua idealização dos “grandes personagens”, evidenciando, mais uma vez, o desconhecimento das transformações vividas pela historiografia. Depois, são invocados como “relevantes” os documentos referentes à história institucional do Tribunal, relacionados à sua “modernização e reforma na estrutura orgânica”, ao seu “planejamento estratégico”, as “suas atividades anuais”, aos “acordos, tratados, convênios, programas e projetos com pessoas físicas ou jurídicas, nacionais ou estrangeiras de relevância para o Poder Judiciário” e aos seus “atos normativos”. Ora, será que ao STF só cabe conservar os documentos referentes a sua própria história, desconsiderando que neles estão contidos dados relevantes para a história da sociedade brasileira como um todo? Mais uma vez, a Justiça isola-se e, em um exercício narcísico, parece se considerar importante por si mesma. Por fim, listam-se como potencialmente relevantes documentos relacionados a “revoluções, rebeliões e demais movimento sociais no Brasil e no exterior” e a “problemas fronteiriços entre os Estados da Federação”. Nenhuma objeção do ponto de vista histórico desde que se considere que tais movimentos e problemas não esgotam a história brasileira, que muitos “pequenos movimentos” e “pequenos problemas”, muitas vezes quotidianos e envolvendo pessoas comuns, fizeram e fazem a nossa sociedade, determinaram e determinam quem somos e quem podemos ser.
Ao final, poder-se-ia perguntar: então todos os documentos produzidos por uma sociedade e por uma instituição como o STF devem ser permanentemente arquivados? Certamente que não, pois guardar tudo não significa permitir um conhecimento completo da história. Além disso, deve-se levar em conta o investimento de recursos materiais e humanos necessário a esse arquivamento. Porém, não é determinando por decreto o que é ou não um documento histórico, sobretudo a partir de critérios reconhecidamente ultrapassados, que se faz essa seleção. Tal processo deve ser encaminhado por comissões multidisciplinares, formadas por profissionais competentes e com um mínimo de independência, das quais participem com voz ativa historiadores com experiência na pesquisa histórica e conhecimento dos debates historiográficos contemporâneos. Essas comissões devem implementar mecanismos de gestão documental orgânicos e sistemáticos que levem em conta especialmente a importância do patrimônio documental, do direito à história e à memória, componentes fundamentais da cidadania, e não a disponibilidade de recursos. Esses, no caso do Poder Judiciário, que muitas vezes desloca somas vultuosas à construção de prédios suntuosos, certamente não vão faltar, se a escala de prioridades orçamentárias sofrer modificações. Será que não vale à pena investir mais em arquivos capazes de prover as informações históricas necessárias aos pesquisadores e à sociedade em geral do que em gabinetes luxuosos?
Com base nessas considerações, rogamos ao STF que revogue a Resolução No 474, pelo bem da memória nacional, da pesquisa histórica, da cidadania, e, por que não, da imagem já tão desgastada de nosso Judiciário.
Diretoria da ANPUH – Associação Nacional de História
Gestão 2011-2013

janeiro 16, 2012

50. Comissão da verdade

A Associação Nacional de História lançou um posicionamento sobre a Comissão da Verdade criada pelo governo. É em parte uma defesa da Comissão, se seu trabalho for bem feito, e em parte uma defesa da atividade dos historiadores e a comtribuição que eles têm a dar nesse trabalho. Em todo caso, merece uma olhada:


COMISSÃO DA VERDADE: ENTRE A MEMÓRIA E A HISTÓRIA
 

Recentemente foi aprovada pelo Congresso Nacional a formação da Comissão da Verdade que terá como função apurar as violações aos direitos humanos ocorridas em nosso país entre 1946 e 1988. A ela não cabe punir ou julgar culpados, mas lançar luz sobre uma série de crimes perpetrados por agentes governamentais, em especial no período da ditadura civil-militar iniciada com o golpe de 1964, esclarecendo suas circunstâncias, motivações, agentes, entre outros aspectos. Alguns, sobretudo aqueles setores identificados com os governos autoritários, a acusam de “revanchista”, por querer reacender conflitos que deveriam, em sua visão, ter sido esquecidos com a Lei da Anistia de 1979. Outros, em especial os militantes de direitos humanos e os familiares de mortos e desaparecidos políticos, denunciam seu caráter limitado e seus precários recursos (incluindo um número reduzido de membros e um tempo curto para as investigações). De qualquer forma, trata-se de uma iniciativa fundamental para que se possa encarar de frente uma série de situações traumáticas próprias desse passado recente que insiste em não passar, e que macula até hoje a nossa democracia.
A Comissão da Verdade assemelha-se a outras iniciativas ocorridas em países que passaram por traumas coletivos, em geral provocados por governos ditatoriais e autoritários, os quais pareciam impedir-lhes de seguir em frente com seus projetos de organização democrática. Isso aconteceu, através de modalidades e com resultados variados, na Alemanha após o nazismo, nos países do Leste europeu na sequência da débâcle do bloco comunista, na África do Sul depois do apartheid e em países do Cone Sul com o fim das ditaduras de Segurança Nacional. Em todos esses casos, muito se falou do dever de memória, ou seja, do dever de lembrar o horror para não repeti-lo, o que, em alguns casos, implicou também reparações materiais e simbólicas às vítimas, aos seus familiares ou mesmo a grupos sociais inteiros (como judeus e negros) que haviam sido submetidos a terríveis violências por parte do aparato estatal.
Porém, é preciso reconhecer que, se, por um lado, as reivindicações de cunho memorial são justificadas e importantes, elas não são suficientes. A memória é sempre ligada aos afetos, a identidades específicas, a sentimentos muitas vezes autocentrados do tipo: “você não passou por isso, então não pode entender e julgar o que ocorreu”. Por isso, é tão importante que as lembranças sejam compreendidas à luz da História, forma de conhecimento do passado ligada à razão, ao intelecto, ao distanciamento, à tentativa de pensar o que ocorreu de maneira global e articulada. Obviamente, o historiador nunca é neutro e imparcial, ele também é sujeito de seu tempo. Porém, ao longo de sua formação, desenvolve habilidades como a pesquisa em arquivos, a crítica documental, a interpretação de testemunhos e a coleta e análise de fontes orais que lhe permitem formular questões menos emocionais e mais balizadas por referências conceituais e metodológicas próprias de um conhecimento científico que tem por objetivo compreender, a partir da análise de fontes históricas, as tramas do passado (ainda que recente). Por esse motivo, a ANPUH – Associação Nacional de História, entidade que congrega aproximadamente quatro mil profissionais de História atuantes no ensino, na pesquisa e nas instituições voltadas à preservação do patrimônio, julga fundamental a participação de historiadores profissionais na Comissão da Verdade.
Os estudos históricos desenvolvidos no Brasil na atualidade são de altíssima qualidade e nossos historiadores são reconhecidos nas mais renomadas instituições de pesquisa do mundo. Muitos se dedicam ao campo que se convencionou chamar de “história do tempo presente”, que antes era visto, em razão de sua proximidade cronológica, como inadequado ao historiador. Tal concepção se alterou profundamente e hoje se sabe que a distância temporal não é garantia de distanciamento intelectual (afinal, histórias muito antigas ainda podem fomentar conflitos sangrentos, como acontece no Oriente Médio). Da mesma forma, os historiadores podem se voltar a processos bastante recentes, valendo-se de um distanciamento analítico possibilitado por procedimentos rigorosos de pesquisa. Por isso, certamente, diversos são os profissionais capacitados para compor a referida Comissão. Eles têm o dever e a capacidade de pensar os temas tratados em tão importante fórum não apenas pelas lentes afetivas da memória, mas também pela perspectiva racional da História. Por isso, sua presença é imprescindível nos trabalhos da Comissão da Verdade e nos debates por ela suscitados que, com certeza, mobilizarão a sociedade brasileira no próximo ano.

49. Cabral em 1500 - Achamento intencional ou acidental?

A pergunta do título deste post é uma dúvida histórica que com frequência se ouve: ao encontrar o que viria a ser o Brasil em abril de 1500, Cabral sabia antecipadamente o que estava fazendo ou veio parar aqui por acidente?
Um dos principais historiadores portugueses da atualidade, Luís Filipe Thomaz, escreveu um artigo com sua contribuição para a questão. O resumo dá uma boa ideia de seu posicionamento:

O grande projeto de d. Manuel (r. 1495-1521) era, na sua essência, um projeto de
cruzada, visando o ataque ao Império Mameluco pelo mar Roxo e a recuperação
de Jerusalém. O Brasil não podia representar nele senão o modesto papel de escala
técnica para as naus da Índia. Embora haja múltiplos indícios de que, pelo menos
ca. 1492, conhecia-se já vagamente a existência de terras naquela zona do globo
e de que o desvio de Pedro Álvares Cabral para ocidente foi intencional, este não
parece imputável a instruções secretas de d. Manuel, mas antes a manobras da corte,
majoritariamente adversa aos planos de cruzada do soberano.


Primeiro fato: o continente americano estava sendo descoberto aos poucos e ninguém conhecia sua extensão exata em 1500. Cada nova expedição castelhana ou portuguesa trazia notícias de mais um pedaço de terra - uma ilha, um pedaço de continente? - e ainda não se tinha certeza de como as peças se encaixavam no mapa. Em todo caso, era razoável concluir que devia existir alguma terra na área dada aos portugueses pelo Tratado de Tordesilhas:

Eram certamente essas tais terras de cuja existência suspeitava d. João que
apareciam debuxadas, não sabemos com que grau de verossimilhança, no mapa
de Pero Vaz Bisagudo a que se refere mestre João. O esboço era sem dúvida
conjetural, pois não podia haver delas senão uma vaga ideia. Nem sequer se
devia saber ao certo se eram ilhas, como criam os habitantes de Santiago, se
terra firme, como afirmava d. João II. A dúvida manter-se-ia mesmo depois do
descobrimento cabralino: tanto Pero Vaz de Caminha como mestre João opinam
que se trataria de ilha ou arquipélago; a continentalidade da terra descoberta
só começa a ser decididamente afirmada em documentos de 1501: a relação
do crético à senhoria de Veneza, a carta de Vespúcio escrita do Cabo Verde e,
embora com menos convicção, a chamada Relação do piloto anónimo. O crético
é assaz peremptório: “esta terra é terra firme, porque viram mais de duas mil
milhas de costa e não lhe encontraram fim”. Vespúcio vai mais longe ainda,
identificando o continente tocado por Cabral com o que ele próprio costeara no
ano precedente ao serviço de Castela, integrado, como se sabe, na expedição
de Hojeda. O mais provável é que, como afirma Gaspar Correia, o navio
de Gaspar de Lemos, mandado a Lisboa com a nova do achamento do Brasil,
mesmo sem efetuar novos desembarques, o tenha costeado de Porto Seguro
para norte, apercebendo-se então da sua continentalidade.


Segundo fato: a rota seguida por Cabral é um tanto quanto peculiar. Segundo os entendidos em navegação e correntes marítimas, não haveria muita chance de ele ter sido desviado de rumo acidentalmente, por uma tempestade ou coisa do tipo.

É difícil abstrair de tal pano de fundo ao considerar a rota seguida por Cabral.
Já no século XVI, se afigurava insólita, levando vários cronistas a imaginar uma
tempestade que, no Atlântico sul, o teria arrastado para sueste, mas que as fontes
coevas mais fidedignas, como Caminha, mestre João e a primeira edição de
Castanheda, não referem nem deixam entrever; ou então, como imagina António
Galvão, que a armada tivesse perdido a rota, ao procurar em vão a nau que dela
se apartara em Cabo Verde, o que tampouco é exato. O que mais espanta é que
Cabral tivesse aterrado no Brasil tanto a ocidente e tanto a sul, quase à latitude
em que, na rota mais expedita para a Índia, devia começar a inflectir para leste.

Desde o século passado que os marinheiros e geógrafos que estudaram o
percurso de Cabral, como Baldaque da Silva, Gago Coutinho e o almirante
Fonseca, foram unânimes em mostrar, com argumentos que seria ocioso repetir
aqui, que no condicionalismo físico de ventos e correntes do Atlântico meridional
nada implicava tamanho bordo para sueste numa viagem em direção ao Cabo – pelo que parece impor-se a conclusão de que o bordo foi intencional. 


Problema: se foi intencional, de quem veio a ideia? A resposta mais óbvia: do rei d. Manuel de Portugal, mentor da expedição. Parece uma conclusão lógica, mas levanta mais dificuldades do que explica.

Primeiro obstáculo: as instruções dadas pelo rei a Cabral não mencionam nenhum desvio para oeste a fim de encontrar novas terras. Seria possível que ele tivesse dado instruções secretas nesse sentido, o que nos leva ao

Segundo obstáculo: a frota comandada por Cabral era de grande porte, um investimento caríssimo destinado a visitar a Índia e ganhar apoio dos supostos cristãos indianos para os projetos expansionistas do rei. Qual o sentido de arriscar um investimento desses para fazer o que um único navio poderia fazer? Se a intenção era demarcar as novas terras contra avanços espanhóis, um navio, explorando a costa norte do continente (cuja existência já se conhecia vagamente) no sentido leste-oeste até chegar à linha de Tordesilhas, seria a solução mais conveniente.

Por parte de Portugal impunha-se, portanto, a vigilância. Não era, contudo,
a costa norte-sul do Brasil que importava vigiar, mas a costa leste-oeste do Rio
Grande do Norte ao Maranhão. A solução mais lógica seria despachar imediatamente
de Lisboa uma caravela a tomar posse das terras reservadas a Portugal pelo
tratado e delimitar a raia; mas, nesse caso, o objetivo seria a costa setentrional do
Brasil, onde, devido ao regime de ventos e correntes, jamais se poderia passar
em viagem para a Índia, e não o sul baiano a que Cabral aportou.
Não é de crer, por conseguinte, que no momento de despachar para a Índia
seu segundo capitão, o rei, que com tamanho esforço prosseguia, em luta surda
com a corte, a sua política oriental, quisesse pôr em risco o seu objetivo central
para proceder ao reconhecimento de um território cuja posse ficara assegurada
já em Tordesilhas, e que uma simples caravela enviada de Lisboa poderia
facilmente explorar. Desviar da sua rota uma frota inteira para representar na
costa sul-americana a farsa do descobrimento ocasional era expô-la inutilmente
aos riscos de encalhar nos recifes coralinos que acompanham quase todas as
costas tropicais, de incorrer em recontros com nativos, de perder tempo e dobrar
o Cabo no pino do inverno, quando são mais temíveis os ventos de oeste, de
falhar no Índico a monção mais favorável e ter de invernar na África Oriental,
como dois anos antes ia sucedendo ao Gama.
Se havia a certeza de que essas terras do sudoeste do Atlântico recaíam
dentro da demarcação portuguesa, a farsa era de todo inútil. Se, pelo contrário,
havia dúvidas quanto à sua situação em relação à raia de Tordesilhas, uma caravela
isolada poderia efetuar as observações necessárias e as medições que se
impunham muito mais discretamente que uma armada imponente em que boa
parte da Europa tinha os olhos postos.


Terceiro obstáculo: qual o motivo para o rei dar ordens secretas? Os espanhóis não teriam o que protestar se fossem encontradas terras na área portuguesa, e os nobres portugueses estavam mais interessados que o rei no Atlântico.

No caso de Pedro Álvares Cabral, por que sigilo? Por via da oposição interna?
Mas essa estava, segundo tudo leva a crer, muito mais interessada que
d. Manuel no Atlântico; nada conviria mais ao soberano para aquietá-la do que
acenar-lhe com compensações, significando-lhe que era também sua intenção
mandar descobrir terra em que em breve poderiam mercadejar a seu talante.
Quanto a Castela, não se compreende porque precisaria o soberano português
de mandar secretamente descobrir o que pelo Tratado de Tordesilhas lhe cabia
manifestamente em sorte. Se, em 1493, quando as negociações estavam ainda
em curso, ninguém guardara o segredo e as suspeitas de d. João II chegaram
ao conhecimento dos Reis Católicos, para que o sigilo agora que tudo ficara
regulado e o filho de d. Manuel era o herdeiro jurado das três coroas?

[...]
De qualquer modo, entre a redação das instruções para Cabral, que não deve
ter tido lugar antes da sua nomeação para capitão da frota, a 15 de fevereiro, e a
sua partida efetiva, a 9 de março, nenhum concorrente externo teria tempo para
se antecipar a Portugal e fincar pé no Brasil. Não parece pois haver qualquer
razão para que d. Manuel desse a Pedro Álvares Cabral instruções secretas
contraditórias das que lhe dava por escrito.


Quarto obstáculo: se as terras americanas fossem importantes para o rei a ponto de merecerem ordens secretas para um desvio da fronta, presumivelmente d. Manuel estaria interessado em contar a todo o mundo sua descoberta, a fim de legitimar sua posse e exaltar as façanhas portuguesas. Mas não foi o que ele fez - na verdade, a descoberta de Cabral pouco interessou ao rei de Portugal...

Seja como for, se foi este quem montou toda aquela encenação, pouco partido
tirou dela. Ao contrário do que se passara no ano anterior com o regresso
de Vasco da Gama, e do que se passaria mais tarde com as sucessivas façanhas
dos portugueses na Índia, não há qualquer prova documental de que d. Manuel
tenha participado o achamento do Brasil aos concelhos, mandado celebrar ações
de graças, notificado a Santa Sé, ou comunicado aos sogros o feito. Só a estes
o viria a participar mais tarde, após o regresso de Cabral da Índia, intercalando
na relação do que no Malabar se passara, que era o que deveras lhe importava
e constituía o escopo da missiva, um curto parágrafo sobre o achamento do
Brasil, nitidamente inspirado na carta de Pero Vaz de Caminha.


Se o achamento do Brasil não foi por ordens reais, mesmo assim pode ter sido proposital. A explicação mais simples é que Cabral tenha desviado a frota a fim de reabastecê-la nessas terras de cuja existência se suspeitava:

O fato de o desvio da frota de Cabral para sudoeste não parecer imputável a
instruções d’el-rei não invalida que possa ter sido intencional. Pode, por exemplo,
ter tido uma causa assaz prosaica. A armada não parara em Cabo Verde
para fazer aguada, como previam as instruções dadas por Vasco da Gama. Não
é impossível que, passado já o arquipélago, tenham se arrependido, receando
que lhes viesse a faltar água e lenha. Sabendo que algures, a ocidente, se dizia
à boca cheia haver terras emersas, podem ter rumado para lá, na esperança de aí
se poderem aprovisionar de madeira e água doce – como de fato veio a suceder
e, na esteira de Caminha, d. Manuel refere aos Reis Católicos. É a mais simples
e quiçá a mais verossímil das suposições.


Thomaz levanta outra hipótese, um pouco mais conspiratória: o desvio teria se dado por iniciativa de capitães da frota, mais interessados no comércio do Atlântico (que prosperava na costa africana) que nos projetos expansionistas reais no Mar Vermelho.

Aos opositores da política indiana do Venturoso conviria, por qualquer meio,
desviar do mar Roxo as atenções do poder e os cabedais, energias e recursos
humanos da nação, oferecendo-lhes no Atlântico sul um campo alternativo de
expansão. Extrapolando para inícios do século XVI o que se passaria em seus
finais e na centúria seguinte, podemos, por outro lado, presumir que a média
burguesia nacional, mormente a dos portos secundários, que não dispunha de
cabedais suficientes para se empenhar no trato da longa rota do Cabo, anelaria
por achar outros mercados, mais vizinhos.


Um pouco improvável, talvez, mas interessante ainda assim. O que não muda é que, tenha sido por acidente, ordens do rei, parada para reabastecimento ou foco de expansão no Atlântico sul, encontrar as futuras terras brasileiras foi muito menos interessante para Portugal do que o comércio e conquistas na Índia, uma das regiões mais ricas do mundo em 1500. O Brasil permaneceu pouco explorado por cerca de 30 anos, e só se tornou a grande prioridade portuguesa quando as possessões indianas entraram em declínio pela competição com outras potências europeias no século 17. Nossa existência pressupõe não só Portugal, mas também a Índia. Mesmo assim, parece que só nos damos ao trabalho de aprender um dos lados dessa história. Pouco se diz das grandes rotas de comércio no Oceano Índico, por onde passavam muito mais mercadorias do que as especiarias de que tanto se fala, e que justificavam que os europeus atravessassem meio mundo a navio apenas para tirar sua fatia dos lucros. Mas isso fica para outra vez....

janeiro 08, 2012

48. A família real inglesa pode perder um reino

Não, os ingleses não se revoltaram contra a monarquia nem estão cercando o palácio de Buckingham com metralhadoras. O reino em perigo é outro: a Jamaica.
O Reino Unido é apenas um dos dezesseis países a manter a rainha Elizabeth II como chefe de Estado, sendo os outros quinze ex-colônias britânicas, da Austrália a São Vicente e Granadinas. Como ela mora no seu reino mais antigo, os poucos poderes da monarquia nos outros quinze países são exercidos por governadores gerais, nomeados pela rainha mas escolhidos pelo Primeiro Ministro local.

E, antes que alguém pergunte, Elizabeth II é II na Jamaica também, mesmo nunca tendo havido uma Elizabeth I por lá - a Jamaica foi tomada pelos ingleses na metade do século 17, quando os piratas do Caribe navegavam pelos mares e  Elizabeth I da Inglaterra já existia apenas nas lembranças dos velhos. O sistema de numeração britânico dos monarcas diz que se utiliza o maior número quando houver divergência, ou seja, quase sempre a numeração inglesa é a que conta.
(Exceção: como a Escócia teve monarquia própria antes de ser incorporada ao Reino Unido, para alguns nomes, como James, predominaria a numeração escocesa.)

Nos últimos dias, a Jamaica, um dos dezesseis reinos da casa de Windsor, elegeu uma nova Primeira Ministra, Portia Simpson-Miller, que já de cara anunciou que pretende tornar a Jamaica uma república.

Se a promessa for levada a cabo, o que isso muda? Em termos práticos, provavelmente não muita coisa - com poucos retoques, o sistema de governo jamaicano pode se converter ao republicanismo, sendo preciso apenas pensar em um novo chefe de Estado e em um tribunal que substitua o Conselho Privado, órgão do governo britânico que exerce a função de tribunal de última instância no Reino Unido e diversas ex-colônias, inclusive a Jamaica.

Em termos simbólicos, as coisas são um pouco diferentes. Se os jamaicanos consideram a família real não uma fonte de orgulho nacional, mas um legado do colonialismo a ser superado, a republicanização deve indicar um certo afastamento dos britânicos. Para estes, cada vez mais (auto-)marginalizados na União Europeia e tratados pelos Estados Unidos como aliados mas não como iguais, é uma péssima hora para perder influência em qualquer lugar, especialmente em sua principal ex-colônia caribenha.

É cedo para dizer se vai ser apenas um alarme falso, algo de pouca importância ou se, em retrospecto, esse vai ser um dos muitos sinais do relativo declínio do Ocidente que estamos vendo nos últimos anos. Quem viver, verá.