abril 27, 2011

24. Uma pérola legislativa

Quando o mundo parece um lugar sombrio e sem esperança, nada mais divertido (sob uma ótica, confesso, um tanto cínica) do que ver o que nossos queridos representantes estão fazendo com os mandatos que lhes demos. Ao invés de resolver problemas, grandes ou pequenos, tomam medidas totalmente inócuas como esta, aprovada recentemente pela Assembleia Legislativa do RS:

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Projeto de Lei nº 156 /2009
Deputado(a) Raul Carrion
Institui a obrigatoriedade da tradução de expressões ou
palavras estrangeiras para a língua portuguesa, sempre que
houver em nosso idioma palavra ou expressão equivalente, no
âmbito do Estado do Rio Grande do Sul e dá outras
providências.
Art. 1º Institui a obrigatoriedade da tradução de expressões ou palavras estrangeiras para a língua
portuguesa, em todo documento, material informativo, propaganda, publicidade ou meio de comunicação
através da palavra escrita no âmbito do Estado do Rio Grande do Sul, sempre que houver em nosso idioma
palavra ou expressão equivalente.
§ 1º – Nos casos excepcionais, em que não houver na língua portuguesa palavra ou expressão
equivalente, o significado ou tradução da palavra ou expressão estrangeira deverá estar escrito, com o
mesmo destaque, subseqüentemente a sua utilização no texto.
§ 2º - A tradução a que se refere o caput deste artigo deve ser do mesmo tamanho que as palavras
em outro idioma expostas no documento, material informativo, propaganda, publicidade ou meio de
comunicação em questão.
Art. 2o Todos os órgãos, instituições, empresas e fundações públicas deverão priorizar na redação
de seus documentos oficiais, sítios virtuais, materiais de propaganda e publicidade, ou qualquer outra forma
de relação institucional através da palavra escrita, a utilização da língua portuguesa, nos termos desta lei.
Art. 3º Esta Lei poderá ser regulamentada para garantir sua execução e fiscalização e para definir
as sanções administrativas a serem aplicadas àquele, pessoa física ou jurídica, pública ou privada, que
descumprir qualquer disposição desta lei
Art. 4o Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação.
Porto Alegre, 03 de agosto de 2009.
Deputado(a) Raul Carrion

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Pode parecer que essa patriotice não tem nada a ver com a história, e realmente não tem mesmo muito a ver. O que houve aqui é mais um esquecimento dela. Esquecimento de que o português não existe pronto e puro no mundo platônico das ideias, tendo se desenvolvido a partir do latim vulgar (a língua que o povão falava no império romano, muito diferente do latim literário que só a elite usava) com empréstimos imensos do árabe, depois de outras línguas europeias e, no caso da variante brasileira, tantos outros empréstimos de línguas africanas e indígenas.
Existe algum motivo convincente para querer limitar os empréstimos a partir de agora e não limitar os já feitos antes? Algum motivo para se preocupar com "parking" (um dos estrangeirismos que o autor do projeto menciona neste texto de justificativa) mas não com "futebol", que também veio do inglês (droga de ingleses imperialistas, corrompendo nosso idioma há cem anos atrás!)? Ou podemos voltar mais e considerar um estrangeirismo a palavra "arroz", que pegamos do árabe como milhares de outras (droga de árabes imperialistas, corrompendo nosso idioma há mil anos atrás!)? Pensando bem, se o verdadeiro objetivo é condenar o imperialismo, falar português no Brasil é meio descabido, já que a) os portugueses só falavam uma língua latina graças à conquista romana da Península Ibérica, imperialismo puro e desavergonhado, e b) só falamos português aqui porque os portugueses invadiram uma terra que não era deles, mataram e escravizaram a maior parte dos ocupantes anteriores...

Exageros à parte, um fato simples permanece: o Brasil tem origem colonial. Falamos a língua do colonizador. Foram derramados rios de sangue para que os portugueses se impusessem como donos do lugar e estabelecessem seus costumes, leis, língua, etc. Então como o português poderia ser "patrimônio cultural da nação e expressão da existência soberana do nosso povo"? E, se os deputados realmente acreditam nisso, por que não deixar o português nas mãos daqueles que mais entendem dele: nós, seus usuários de todos os dias?

É interessante, no mínimo, ver como os combates aos estrangeirismos/imperialismos de hoje implicam na aceitação dos estrangeirismos e imperialismos de ontem. Daqui a algumas décadas, essas palavras que os puristas de hoje perseguem já vão estar incorporadas na língua, e defendidas pelos puristas do futuro contra os estrangeirismos que virão - chineses, talvez...

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