No post 19, falei sobre a morte iminente de uma língua indígena mexicana, o ayapaneco, e sugeri que a situação no Brasil não era muito diferente daquela no México: descaso por qualquer coisa muito diferente da língua dominante.
Infelizmente, parece que meu palpite baseado no senso comum estava bastante próximo da realidade, segundo o que vi a respeito desde então.
Evidência número um, um artigo de Aryon Rodrigues, um dos principais linguistas brasileiros, sobre a situação dos nossos idiomas indígenas. O texto é de leitura fácil, mas como o objetivo aqui é informar, seguem os dados principais para os leitores mais preguiçosos:
- número de línguas faladas no atual território brasileiro em 1500: cerca de 1200;
- quantidade de línguas indígenas remanescentes no Brasil em 2005: cerca de 181;
- dessas 181 línguas, 76% são faladas por menos de mil pessoas cada;
- o trabalho de documentação dessas línguas antes que sejam extintas não está sendo feito como deveria. O motivo principal? Faltam pesquisadores. Nossos cursos de letras são voltados para a formação de professores escolares, produzindo apenas um punhado de linguistas capazes de fazer a coleta necessária. A falta de recursos também não ajuda muito.
Evidência número dois, um artigo sobre a concepção equivocada de que no Brasil só se fala português e de que haveria uma correlação entre ser brasileiro e falar português. Evidência de que essa visão é errada? Aqui vai:
Para compreendermos a questão é preciso trazer alguns dados: no Brasil de hoje
são falados por volta de 200 idiomas. As nações indígenas do país falam cerca de 170
línguas (chamadas de autóctones), e as comunidades de descendentes de imigrantes
outras 30 línguas (chamadas de línguas alóctones). Somos, portanto, como a maioria
dos países do mundo - em 94% dos países do mundo são faladas mais de uma língua -
um país de muitas línguas, plurilíngüe.
Tampouco o "mito do monolinguismo" é inofensivo, por ter sido promovido ativamente ao longo do tempo, justificando repressões de toda ordem. O Estado, seja o português no período colonial ou o brasileiro desde a independência, não se marcou historicamente por uma grande tolerância pela diversidade de falas. Além da questão dos índios, temos a dos imigrantes italianos e alemães durante a era Vargas:
Durante o Estado Novo, mas sobretudo entre 1941 e 1945, o governo ocupou as
escolas comunitárias e as desapropriou, fechou gráficas de jornais em alemão e
italiano, perseguiu, prendeu e torturou pessoas simplesmente por falarem suas línguas
maternas em público ou mesmo privadamente, dentro de suas casas, instaurando uma
atmosfera de terror e vergonha que inviabilizou em grande parte a reprodução dessas
línguas, que pelo número de falantes eram bastante mais importantes que as línguas
indígenas na mesma época: 644.458 pessoas, em sua maioria absoluta cidadãos
brasileiros, nascidos aqui, falavam alemão cotidianamente no lar, numa população
nacional total estimada em 50 milhões de habitantes, e 458.054 falavam italiano, dados
do censo do IBGE de 1940 (Mortara, 1950). Essas línguas perderam sua forma
escrita e seu lugar nas cidades, passando seus falantes a usá-las apenas oralmente e cada
vez mais na zona rural, em âmbitos comunicacionais cada vez menos extensos.
Se a maior parte da população brasileira de hoje é monoglota em português e falar português é considerado um fator de identidade nacional, isso é a soma de um passado em que outras línguas foram ou ignoradas ou ativamente discriminadas. Os paralelos com outras áreas - sexualidade, religiosidade, etnicidade - estão aí para quem quiser fazer as comparações. A grande questão é se queremos continuar seguindo por esse caminho.
Onde o ontem vive no hoje. Notas sobre a história, a ciência histórica e a vida acadêmica para leitores curiosos.
março 27, 2011
20. Novo artigo
Mais feliz era Heródoto, que viveu antes das universidades: bastou um livro para assegurar a sua imortalidade. Hoje em dia, qualquer um que se envolva no meio acadêmico precisa produzir um fluxo constante de publicações, apresentações, qualquer coisa que possa acrescentar algumas linhas ao currículo; um CV volumoso aumenta as chances de entrar na pós-graduação, ser contratado, enfim, todas as coisas boas.
Não que a simples quantidade baste: onde se é publicado também é importante. O índice Qualis, uma das obsessões dos pesquisadores, mede a qualidade dos periódicos, não dos textos. As revistas recebem uma avaliação de 0 a 7 (expressa em letras; em ordem crescente, temos: C, B5, B4, B3, B2, B1, A2 e A1) de acordo com uma série de critérios, e os pesquisadores têm sua produção avaliada de acordo com as revistas em que publicaram. Colocando em termos práticos, se Einstein fosse brasileiro e tivesse publicado a teoria da relatividade especial em uma revista de Qualis baixo, isso beneficiaria menos a carreira dele do que publicar artigos medíocres em revistas conceituadas. Provavelmente precisamos de alguma espécie de critério objetivo para saber quem é mais ou menos relevante em sua área, mas se até eu vejo os problemas do sistema atual em dois minutos, é porque realmente temos problemas.
Depois desse preâmbulo para explicar porque é do meu interesse ter publicações, informo aos interessados que acabo de ter um artigo publicado na nova edição da revista Semina, que trata de como era visto o trabalho feminino nos anos 20 do século passado. Para não estragar a surpresa, apenas vou adiantar que era complicado, porque havia valores conflitantes em jogo.
Confiram a revista, deem uma chance aos artigos, divulguem...
Não que a simples quantidade baste: onde se é publicado também é importante. O índice Qualis, uma das obsessões dos pesquisadores, mede a qualidade dos periódicos, não dos textos. As revistas recebem uma avaliação de 0 a 7 (expressa em letras; em ordem crescente, temos: C, B5, B4, B3, B2, B1, A2 e A1) de acordo com uma série de critérios, e os pesquisadores têm sua produção avaliada de acordo com as revistas em que publicaram. Colocando em termos práticos, se Einstein fosse brasileiro e tivesse publicado a teoria da relatividade especial em uma revista de Qualis baixo, isso beneficiaria menos a carreira dele do que publicar artigos medíocres em revistas conceituadas. Provavelmente precisamos de alguma espécie de critério objetivo para saber quem é mais ou menos relevante em sua área, mas se até eu vejo os problemas do sistema atual em dois minutos, é porque realmente temos problemas.
Depois desse preâmbulo para explicar porque é do meu interesse ter publicações, informo aos interessados que acabo de ter um artigo publicado na nova edição da revista Semina, que trata de como era visto o trabalho feminino nos anos 20 do século passado. Para não estragar a surpresa, apenas vou adiantar que era complicado, porque havia valores conflitantes em jogo.
Confiram a revista, deem uma chance aos artigos, divulguem...
março 22, 2011
19. O triste fim do ayapaneco
Passaram quinhentos anos e a conquista da América continua, agora de formas mais sutis...
É o caso da situação de morte iminente de uma língua indígena mexicana, o ayapaneco, só falado por dois idosos que, por alguma desavença, não se falam há anos. Pensando bem, isso quer dizer que o ayapaneco já está, para todos os efeitos práticos, morto.
Eis a notícia, extraída do Clarín. Meus comentários seguem abaixo.
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Apesar do título sensacionalista escolhido pelo Clarín, a notícia mostra que a briga de Manuel e Isidro fez pouca diferença para o ayapaneco, sendo apenas a gota da água. O que matou esse idioma foram dois fenômenos mais profundos: a pobreza da população indígena do interior, que busca melhores oportunidades nas cidades, e o descaso da sociedade - a população urbana, o governo mexicano e, provavelmente, os próprios indígenas aculturados nas cidades - por idiomas que não o espanhol, o que torna a geração seguinte ao êxodo rural monoglota em espanhol.
Para deixar clara minha posição, não tenho nada contra as pessoas buscarem uma vida melhor ou aprenderem novos idiomas para isso, seja o espanhol no México, o português no Brasil ou o que for. Mas não é preciso esquecer uma língua para aprender outra - se não acredita em mim, pergunte a qualquer belga ou suíço. A opção não era manter o ayapaneco ou usar o espanhol. O que gostaria é que os ex-moradores de Ayapan estivessem num contexto em que o ayapaneco tivesse sido valorizado como uma herança cultural insubstituível e transmitido para as gerações seguintes. Mas quem sou eu para ter a pretensão de reverter séculos em que tudo que os índios americanos fazem é visto como "coisa de índio" e sua cultura é considerada um obstáculo à integração?
Alguém poderia perguntar, sentimentalismos à parte, que falta nos fará o ayapaneco. Sentimentalismos à parte, cada idioma é uma parte do nosso legado cultural comum enquanto seres humanos. Para começo de conversa, um idioma carrega consigo a história dos seus falantes. Vamos supor por um momento que se perdesse qualquer vestígio da existência do português brasileiro: perderíamos um registro da história da colonização portuguesa, com seus contatos e empréstimos de populações indígenas e africanas, e da história posterior do Brasil como país independente e sua considerável abertura a/dependência de influências da Europa e, depois, dos Estados Unidos, como mostrado pela incorporação de inúmeras palavras francesas e inglesas desde o século 19 - sim, esses empréstimos fazem parte da nossa história, desde os já digeridos há tempo, como garage e abat-jour (sim, roubamos garagem e abajur dos franceses) aos mais recentes, como internet e mouse. O que deveria ser feito dessas palavras é outra questão - hoje, estou falando da língua como registro histórico, não de patriotismo barato. Falando em patriotismo barato, não mencionei o curioso fenômeno do inglês made in Brazil, como outdoor ou baby look - quem se opõe a isso por motivos nacionalistas deveria considerar que, presumivelmente, adaptar o idioma imperial às nossas próprias necessidades, de uma forma que nenhum americano ou inglês reconheceria (o que é um hóti dógui, perguntaria ele?), é uma forma de resistência. Ou não?
Segundo, e não menos importante, cada idioma tem suas peculiaridades, desde formas gramaticais únicas até as pequenas excentricidades sem as quais a capacidade de expressão humana - ou nossa compreensão do potencial dessa capacidade - se limita um pouco. Sem ser linguista, só posso dar exemplos que considero interessantes dentro do meu repertório limitado: os japoneses se expressam muito bem sem precisar de conjugações por gênero e número; em contrapartida, os adjetivos japoneses têm conjugações para o presente e passado e para afirmação ou negação. Por exemplo, akai significa vermelho; akakunai, não-vermelho; akakunakatta, não-era-vermelho. Ou vermelha, vermelhos...
O inglês tem três gêneros - masculino, feminino e neutro - que não são muito importantes, já que só mudam os pronomes; via de regra, objetos inanimados são neutros, com algumas exceções pitorescas. É o caso dos navios, que recebem poeticamente o pronome feminino she, como uma forma de apego dos marinheiros às suas embarcações. Como um marinheiro brasileiro expressaria o mesmo sentimento, ou como poderíamos traduzi-lo? "Minha nau"?? E, como Borges dizia, o inglês tem uma flexibilidade para compor palavras que está ausente no espanhol - ou no português. Wordsmith soa razoavelmente natural, ferreiro de palavras é mais canhestro.
Falando no espanhol, eis um idioma que esconde algumas curiosidades em meio às semelhanças com o português. Coisas pequenas mas interessantes, como o numeral dos que não se conjuga no feminino, como o nosso dois/duas, ou sueño, ao mesmo tempo sono e sonho, como se fosse natural termos uma palavra para cada uma dessas coisas; na mesma linha, o japonês ashi é perna ou pé, e o inglês ship pode ser um navio ou uma espaçonave.
E para nós, que pensamos no sol masculino e na lua feminina, é curioso defrontar-se com o alemão, em que é justamente o contrário.
Enfim, fosse eu um linguista, daria uma resposta competente e fundamentada, com exemplos gramaticais e lexicais realmente raros (talvez as línguas africanas que usam estalos), e não uma lista de pequenas anedotas. O realmente importante aqui, e qualquer poliglota vai entender o que estou dizendo, é o seguinte: não existem idiomas equivalentes. Cada um tem suas palavras difíceis de traduzir, suas rimas e trocadilhos próprios (justamente o que torna a poesia quase intraduzível), suas formas de expressão raras e pensamentos que são mais fáceis de expressar nesse idioma do que em qualquer outro, seja por maior ou menor precisão, pela variação de significado de uma palavra ou mais palavras, ou o que for. Quando um idioma se perde, perdemos também uma forma de expressão. Vamos perder algo com o ayapaneco, é só dois velhinhos mexicanos e dois linguistas americanos sabem o quê.
É o caso da situação de morte iminente de uma língua indígena mexicana, o ayapaneco, só falado por dois idosos que, por alguma desavença, não se falam há anos. Pensando bem, isso quer dizer que o ayapaneco já está, para todos os efeitos práticos, morto.
Eis a notícia, extraída do Clarín. Meus comentários seguem abaixo.
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Una lengua morirá por la pelea de sus dos hablantes
21/03/11
El ayapaneco, una de las 364 variantes lingüísticas que existen en México, está condenado a muerte debido a que en el mundo quedan únicamente dos hablantes ancianos que, por enemistades, llevan ya varios años sin comunicarse entre ellos.
Manuel Segovia, de 75 años, e Isidro Velázquez, de 69, son el único testimonio vivo de esta lengua indígena que tiene sus orígenes en el municipio de Jalapa de Méndez, en el sureño estado mexicano de Tabasco.
Ambos viven en la pequeña comunidad de Ayapan y, aunque sus casas están separadas tan sólo por 500 metros , no mantienen relación alguna desde hace años por un desencuentro del que se desconoce el origen.
Según el Instituto Nacional de Lenguas Indígenas (INALI), Segovia les explicó en su momento de que a mediados del siglo XX había casi 8.000 familias ayapanecas, y que a partir de la construcción de la carretera Villahermosa-Comacalco comenzó la migración de estos pobladores y, con ello, la paulatina extinción de su lengua.
“El tiempo y el progreso transformaron el pueblo, la gente se iba a trabajar a los pueblos más grandes y ahí empezaron a ver y a traer otras costumbres”, afirmó Segovia. “Cuando muramos los dos se acabó, la lengua morirá”, sentenció.
No obstante, la riqueza de esta lengua se conservará escrita gracias a que dos lingüistas estadounidenses de la Universidad de Standford grabaron durante dos años a Manuel Segovia pronunciando frente a un micrófono las miles de palabras que conocía . Con las grabaciones hicieron un diccionario que, según Segovia, se vende en Estados Unidos.
En una situación menos grave, pero no por ello menos preocupante, se encuentran en peligro al menos 36 variantes más de lenguas indígenas de México. Según expertos, podrían seguir el camino de las 141 variantes lingüísticas que desde tiempos de la colonia hasta nuestros días ya han desaparecido.
Manuel Segovia, de 75 años, e Isidro Velázquez, de 69, son el único testimonio vivo de esta lengua indígena que tiene sus orígenes en el municipio de Jalapa de Méndez, en el sureño estado mexicano de Tabasco.
Ambos viven en la pequeña comunidad de Ayapan y, aunque sus casas están separadas tan sólo por 500 metros , no mantienen relación alguna desde hace años por un desencuentro del que se desconoce el origen.
Según el Instituto Nacional de Lenguas Indígenas (INALI), Segovia les explicó en su momento de que a mediados del siglo XX había casi 8.000 familias ayapanecas, y que a partir de la construcción de la carretera Villahermosa-Comacalco comenzó la migración de estos pobladores y, con ello, la paulatina extinción de su lengua.
“El tiempo y el progreso transformaron el pueblo, la gente se iba a trabajar a los pueblos más grandes y ahí empezaron a ver y a traer otras costumbres”, afirmó Segovia. “Cuando muramos los dos se acabó, la lengua morirá”, sentenció.
No obstante, la riqueza de esta lengua se conservará escrita gracias a que dos lingüistas estadounidenses de la Universidad de Standford grabaron durante dos años a Manuel Segovia pronunciando frente a un micrófono las miles de palabras que conocía . Con las grabaciones hicieron un diccionario que, según Segovia, se vende en Estados Unidos.
En una situación menos grave, pero no por ello menos preocupante, se encuentran en peligro al menos 36 variantes más de lenguas indígenas de México. Según expertos, podrían seguir el camino de las 141 variantes lingüísticas que desde tiempos de la colonia hasta nuestros días ya han desaparecido.
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Apesar do título sensacionalista escolhido pelo Clarín, a notícia mostra que a briga de Manuel e Isidro fez pouca diferença para o ayapaneco, sendo apenas a gota da água. O que matou esse idioma foram dois fenômenos mais profundos: a pobreza da população indígena do interior, que busca melhores oportunidades nas cidades, e o descaso da sociedade - a população urbana, o governo mexicano e, provavelmente, os próprios indígenas aculturados nas cidades - por idiomas que não o espanhol, o que torna a geração seguinte ao êxodo rural monoglota em espanhol.
Para deixar clara minha posição, não tenho nada contra as pessoas buscarem uma vida melhor ou aprenderem novos idiomas para isso, seja o espanhol no México, o português no Brasil ou o que for. Mas não é preciso esquecer uma língua para aprender outra - se não acredita em mim, pergunte a qualquer belga ou suíço. A opção não era manter o ayapaneco ou usar o espanhol. O que gostaria é que os ex-moradores de Ayapan estivessem num contexto em que o ayapaneco tivesse sido valorizado como uma herança cultural insubstituível e transmitido para as gerações seguintes. Mas quem sou eu para ter a pretensão de reverter séculos em que tudo que os índios americanos fazem é visto como "coisa de índio" e sua cultura é considerada um obstáculo à integração?
Alguém poderia perguntar, sentimentalismos à parte, que falta nos fará o ayapaneco. Sentimentalismos à parte, cada idioma é uma parte do nosso legado cultural comum enquanto seres humanos. Para começo de conversa, um idioma carrega consigo a história dos seus falantes. Vamos supor por um momento que se perdesse qualquer vestígio da existência do português brasileiro: perderíamos um registro da história da colonização portuguesa, com seus contatos e empréstimos de populações indígenas e africanas, e da história posterior do Brasil como país independente e sua considerável abertura a/dependência de influências da Europa e, depois, dos Estados Unidos, como mostrado pela incorporação de inúmeras palavras francesas e inglesas desde o século 19 - sim, esses empréstimos fazem parte da nossa história, desde os já digeridos há tempo, como garage e abat-jour (sim, roubamos garagem e abajur dos franceses) aos mais recentes, como internet e mouse. O que deveria ser feito dessas palavras é outra questão - hoje, estou falando da língua como registro histórico, não de patriotismo barato. Falando em patriotismo barato, não mencionei o curioso fenômeno do inglês made in Brazil, como outdoor ou baby look - quem se opõe a isso por motivos nacionalistas deveria considerar que, presumivelmente, adaptar o idioma imperial às nossas próprias necessidades, de uma forma que nenhum americano ou inglês reconheceria (o que é um hóti dógui, perguntaria ele?), é uma forma de resistência. Ou não?
Segundo, e não menos importante, cada idioma tem suas peculiaridades, desde formas gramaticais únicas até as pequenas excentricidades sem as quais a capacidade de expressão humana - ou nossa compreensão do potencial dessa capacidade - se limita um pouco. Sem ser linguista, só posso dar exemplos que considero interessantes dentro do meu repertório limitado: os japoneses se expressam muito bem sem precisar de conjugações por gênero e número; em contrapartida, os adjetivos japoneses têm conjugações para o presente e passado e para afirmação ou negação. Por exemplo, akai significa vermelho; akakunai, não-vermelho; akakunakatta, não-era-vermelho. Ou vermelha, vermelhos...
O inglês tem três gêneros - masculino, feminino e neutro - que não são muito importantes, já que só mudam os pronomes; via de regra, objetos inanimados são neutros, com algumas exceções pitorescas. É o caso dos navios, que recebem poeticamente o pronome feminino she, como uma forma de apego dos marinheiros às suas embarcações. Como um marinheiro brasileiro expressaria o mesmo sentimento, ou como poderíamos traduzi-lo? "Minha nau"?? E, como Borges dizia, o inglês tem uma flexibilidade para compor palavras que está ausente no espanhol - ou no português. Wordsmith soa razoavelmente natural, ferreiro de palavras é mais canhestro.
Falando no espanhol, eis um idioma que esconde algumas curiosidades em meio às semelhanças com o português. Coisas pequenas mas interessantes, como o numeral dos que não se conjuga no feminino, como o nosso dois/duas, ou sueño, ao mesmo tempo sono e sonho, como se fosse natural termos uma palavra para cada uma dessas coisas; na mesma linha, o japonês ashi é perna ou pé, e o inglês ship pode ser um navio ou uma espaçonave.
E para nós, que pensamos no sol masculino e na lua feminina, é curioso defrontar-se com o alemão, em que é justamente o contrário.
Enfim, fosse eu um linguista, daria uma resposta competente e fundamentada, com exemplos gramaticais e lexicais realmente raros (talvez as línguas africanas que usam estalos), e não uma lista de pequenas anedotas. O realmente importante aqui, e qualquer poliglota vai entender o que estou dizendo, é o seguinte: não existem idiomas equivalentes. Cada um tem suas palavras difíceis de traduzir, suas rimas e trocadilhos próprios (justamente o que torna a poesia quase intraduzível), suas formas de expressão raras e pensamentos que são mais fáceis de expressar nesse idioma do que em qualquer outro, seja por maior ou menor precisão, pela variação de significado de uma palavra ou mais palavras, ou o que for. Quando um idioma se perde, perdemos também uma forma de expressão. Vamos perder algo com o ayapaneco, é só dois velhinhos mexicanos e dois linguistas americanos sabem o quê.
março 18, 2011
18. Atlântida e o marketing arqueológico
A notícia, extraída do Estadão, já tem alguns dias, mas vale a pena reproduzir uma "descoberta" tão sensacional: não a cidade mítica de Atlântida, claro, mas a descoberta de que qualquer coisa vira notícia com o marketing certo, até mesmo a simples expectativa de achados arqueológicos nos quais só os especialistas prestariam atenção em circunstâncias menos midiáticas.
Talvez realmente sejam feitas descobertas interessantes aí mas, até prova em contrário, Atlântida é tão histórica, e tem tanta chance de ser achada, quanto a caverna de Platão.
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"É tão difícil entender que um tsunami possa varrer 100 km de terra, e é disso que estamos falando", disse Richard Freund, professor da universidade de Hartford, em Connecticut, e responsável pela pesquisa.
Para desvendar o mistério que cerca o desaparecimento da cidade, a equipe usou fotos de satélite de uma cidade misteriosa que está submersa para localizar o norte de Cadiz, na Espanha. Lá, enterrada nos pântanos do parque Dona Aña, eles acreditam ter localizado o antigo domínio conhecido como Atlântida.
Entre 2009 e 2010, a equipe de arqueólogos e geólogos usou uma combinação de radar, mapeamento digital e tecnologia subaquática para pesquisar o local. A descoberta de "cidades memoriais" na Espanha, construídas à imagem de Atlântida por aqueles que teriam escapado do Tsunami, deram aos pesquisadores mais provas, disse Freund.
Ainda é difícil ter certeza sobre as evidências, mas Freund diz que achar as "cidades memoriais" o deixou confiante de que Atlântida está enterrada nos pântanos da costa sul da Espanha. "Nós achamos algo que nunca tinha sido visto antes, o que nos dá certa credibilidade".
O filósofo grego Platão escreveu sobre a cidade há 2.600 anos, descrevendo-a como "uma ilha situada em frente ao estreito de Pilares de Hércules", nome dado ao Estreito de Gibraltar na antiguidade. Utilizando a descrição detalhada de Platão como um mapa, as buscas foram concentradas no Mediterrâneo e no Atlântico, acreditando-se que estes eram os melhores lugares para localizar a cidade.
O debate sobre se a cidade realmente existiu dura milhares de anos. Os diálogos de Platão de 360 A.C. são as únicas fontes históricas de informação sobre a cidade. Platão disse que a ilha conhecida como Atlântida "desapareceu nas profundezas do mar em apenas um dia e uma noite".
Especialistas planejam fazer escavações no local e nas "cidades memoriais" encontradas na Espanha para estudar as formações geológicas e para datar seus artefatos.
Talvez realmente sejam feitas descobertas interessantes aí mas, até prova em contrário, Atlântida é tão histórica, e tem tanta chance de ser achada, quanto a caverna de Platão.
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Pesquisadores dizem ter encontrado a cidade perdida de Atlântida
De acordo com pesquisa, a lendária cidade está localizada na costa sul da Espanha
Uma equipe liderada por pesquisadores norte-americanos acredita ter encontrado a lendária cidade de Atlântida, que teria sido atingida por um tsunami e levada para o fundo do mar há milhares de anos."É tão difícil entender que um tsunami possa varrer 100 km de terra, e é disso que estamos falando", disse Richard Freund, professor da universidade de Hartford, em Connecticut, e responsável pela pesquisa.
Para desvendar o mistério que cerca o desaparecimento da cidade, a equipe usou fotos de satélite de uma cidade misteriosa que está submersa para localizar o norte de Cadiz, na Espanha. Lá, enterrada nos pântanos do parque Dona Aña, eles acreditam ter localizado o antigo domínio conhecido como Atlântida.
Entre 2009 e 2010, a equipe de arqueólogos e geólogos usou uma combinação de radar, mapeamento digital e tecnologia subaquática para pesquisar o local. A descoberta de "cidades memoriais" na Espanha, construídas à imagem de Atlântida por aqueles que teriam escapado do Tsunami, deram aos pesquisadores mais provas, disse Freund.
Ainda é difícil ter certeza sobre as evidências, mas Freund diz que achar as "cidades memoriais" o deixou confiante de que Atlântida está enterrada nos pântanos da costa sul da Espanha. "Nós achamos algo que nunca tinha sido visto antes, o que nos dá certa credibilidade".
O filósofo grego Platão escreveu sobre a cidade há 2.600 anos, descrevendo-a como "uma ilha situada em frente ao estreito de Pilares de Hércules", nome dado ao Estreito de Gibraltar na antiguidade. Utilizando a descrição detalhada de Platão como um mapa, as buscas foram concentradas no Mediterrâneo e no Atlântico, acreditando-se que estes eram os melhores lugares para localizar a cidade.
O debate sobre se a cidade realmente existiu dura milhares de anos. Os diálogos de Platão de 360 A.C. são as únicas fontes históricas de informação sobre a cidade. Platão disse que a ilha conhecida como Atlântida "desapareceu nas profundezas do mar em apenas um dia e uma noite".
Especialistas planejam fazer escavações no local e nas "cidades memoriais" encontradas na Espanha para estudar as formações geológicas e para datar seus artefatos.
março 03, 2011
17. Novidades sobre a pré-história
O Estadão de hoje está com um artigo especialmente interessante sobre pré-história. Até onde sei, o Homo sapiens provavelmente tem "apenas" 200 mil anos, não meio milhão, e tenho minhas ressalvas quanto à conclusão - uma coisa é por onde saímos da África, outra bem diferente é onde começou a civilização, ocidental ou qualquer outra. Detalhes à parte, eis a prova de que não sou o único a reclamar do horizonte estreito das aulas de história, mesmo que eu tenha tido a bênção de uma hora de aula sobre a pré-história, não apenas dez minutos:
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Por onde saímos da África?
Na escola me ensinaram que a História começava no Egito e terminava no século 20, 3 mil ou 4 mil anos depois. Demorei para descobrir que essa História de um pequeno subgrupo de Homo sapiens, influenciada pela tradição judaico-cristã, descreve as ultimas páginas do último capítulo de um longo livro.
Lembro que me espantava com o fato de nossa "civilização" sempre encontrar seres humanos cada vez que "descobria" um novo território. Nunca me explicavam como eles tinham chegado lá. De onde teriam vindo os tupis-guaranis que foram encontrar Cabral na praia? A resposta sempre mencionava uma tal de Pré-História, aparentemente perdida para sempre, descrita rapidamente nos dez minutos iniciais da primeira aula sobre o Egito.
A verdade é que a história do Homo sapiens, muito mais longa e interessante, vem sendo desvendada aos poucos. Começa com o aparecimento ainda misterioso da nossa espécie na África, talvez meio milhão de anos atrás; descreve sua saída da África e a aventura de ocupar cada praia e montanha de cada continente. Passa pelo pouso na Lua e terminará algum dia, quando o último Homo sapiens deixar de existir, talvez extinto pelas suas próprias estripulias.
Um dos capítulos, o que descreve nossa saída da África, talvez tenha de ser editado. Descobriram vestígios humanos, datados de 125 mil anos atrás, em cavernas próximas do Estreito de Hormuz, que separa os Emirados Árabes do Irã. Se essa descoberta for confirmada, significa que deixamos a África quase 60 mil anos antes do que se acreditava.
Os arqueólogos concordam que o homem moderno surgiu na África e se espalhou pelo planeta. Concordam também que outras espécies semelhantes, como nossos primos neandertais e o Homo erectus, aventuraram-se fora da África muito antes de nós.
Esses aventureiros acabaram dizimados por nossos ancestrais ou extintos por outros motivos. Até agora, a teoria dominante é a de que havíamos saído da África por volta de 50 mil ou 60 mil anos atrás, cruzando a extensão de terra que separa o norte do Mar Vermelho do Mediterrâneo, cortada hoje pelo canal de Suez. Consistente com essa teoria, os locais onde teríamos primeiro nos instalado seriam representados pelos sítios arqueológicos como Es Skhul e Qafzeh, localizados na vizinhança de Israel, ocupados cerca de 100 mil anos atrás.
O problema é que um grupo de arqueólogos escavou as encostas de Jabel Faya, entre 2003 e 2010, e agora publicou seus achados. Nessa escarpa rochosa, localizada naquele bico de terra que separa o Golfo Pérsico do Oceano Índico, foram achados diversos conjuntos de pontas de machados feitos de pedra lascada. A tecnologia usada para produzir essas pontas é idêntica à usada pelas aldeias de Homo sapiens na África. Um método sensível, utilizado para descobrir a data de sua fabricação, permitiu aos cientistas descobrir que elas foram produzidas 125 mil anos atrás, numa época que acreditávamos que o Homo sapiens habitava somente a África.
Quando essas descobertas foram combinadas com a recente determinação da altura dos mares há 120 mil anos, os cientistas chegaram à conclusão de que essa população humana pode ter deixado a África cruzando o estreito de Bab al Mandab, que separa o Mar Vermelho do Oceano Índico - já que nessa época, porque o mar estava mais baixo, haveria uma ligação de terra firme entre o sul do que é hoje a Eritreia e o Iêmen. Atravessado o estreito, eles teriam migrado pela costa até Jabel Faya. Essa descoberta colocaria nossa espécie na Ásia antes da massiva erupção de um vulcão na Indonésia, 74 mil anos atrás, que se acredita ter tornado grande parte da Ásia inabitável por milhares de anos.
Se essa descoberta se confirmar (alguns arqueólogos acreditam que talvez essas pontas de machado possam ter sido fabricadas por outra espécie que não o Homo sapiens), a região de Israel e os vales dos Rios Tigre e Eufrates podem não ter sido nosso primeiro lar fora da África. Teremos de ensinar nas escolas que a civilização ocidental não começou nas praias do Mediterrâneo, como ensina a tradição judaico-cristã, mas sim nas costas do Iêmen e do Omã.
BIÓLOGO
MAIS INFORMAÇÕES: THE SOUTHERN ROUTE "OUT OF AFRICA": EVIDENCE FOR AN EARLY EXPANSION OF MODERN HUMANS INTO ARABIA. SCIENCE, VOL. 331, PÁG 453
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Por onde saímos da África?
Fernando Reinach - O Estado de S.Paulo
Na escola me ensinaram que a História começava no Egito e terminava no século 20, 3 mil ou 4 mil anos depois. Demorei para descobrir que essa História de um pequeno subgrupo de Homo sapiens, influenciada pela tradição judaico-cristã, descreve as ultimas páginas do último capítulo de um longo livro.
Lembro que me espantava com o fato de nossa "civilização" sempre encontrar seres humanos cada vez que "descobria" um novo território. Nunca me explicavam como eles tinham chegado lá. De onde teriam vindo os tupis-guaranis que foram encontrar Cabral na praia? A resposta sempre mencionava uma tal de Pré-História, aparentemente perdida para sempre, descrita rapidamente nos dez minutos iniciais da primeira aula sobre o Egito.
A verdade é que a história do Homo sapiens, muito mais longa e interessante, vem sendo desvendada aos poucos. Começa com o aparecimento ainda misterioso da nossa espécie na África, talvez meio milhão de anos atrás; descreve sua saída da África e a aventura de ocupar cada praia e montanha de cada continente. Passa pelo pouso na Lua e terminará algum dia, quando o último Homo sapiens deixar de existir, talvez extinto pelas suas próprias estripulias.
Um dos capítulos, o que descreve nossa saída da África, talvez tenha de ser editado. Descobriram vestígios humanos, datados de 125 mil anos atrás, em cavernas próximas do Estreito de Hormuz, que separa os Emirados Árabes do Irã. Se essa descoberta for confirmada, significa que deixamos a África quase 60 mil anos antes do que se acreditava.
Os arqueólogos concordam que o homem moderno surgiu na África e se espalhou pelo planeta. Concordam também que outras espécies semelhantes, como nossos primos neandertais e o Homo erectus, aventuraram-se fora da África muito antes de nós.
Esses aventureiros acabaram dizimados por nossos ancestrais ou extintos por outros motivos. Até agora, a teoria dominante é a de que havíamos saído da África por volta de 50 mil ou 60 mil anos atrás, cruzando a extensão de terra que separa o norte do Mar Vermelho do Mediterrâneo, cortada hoje pelo canal de Suez. Consistente com essa teoria, os locais onde teríamos primeiro nos instalado seriam representados pelos sítios arqueológicos como Es Skhul e Qafzeh, localizados na vizinhança de Israel, ocupados cerca de 100 mil anos atrás.
O problema é que um grupo de arqueólogos escavou as encostas de Jabel Faya, entre 2003 e 2010, e agora publicou seus achados. Nessa escarpa rochosa, localizada naquele bico de terra que separa o Golfo Pérsico do Oceano Índico, foram achados diversos conjuntos de pontas de machados feitos de pedra lascada. A tecnologia usada para produzir essas pontas é idêntica à usada pelas aldeias de Homo sapiens na África. Um método sensível, utilizado para descobrir a data de sua fabricação, permitiu aos cientistas descobrir que elas foram produzidas 125 mil anos atrás, numa época que acreditávamos que o Homo sapiens habitava somente a África.
Quando essas descobertas foram combinadas com a recente determinação da altura dos mares há 120 mil anos, os cientistas chegaram à conclusão de que essa população humana pode ter deixado a África cruzando o estreito de Bab al Mandab, que separa o Mar Vermelho do Oceano Índico - já que nessa época, porque o mar estava mais baixo, haveria uma ligação de terra firme entre o sul do que é hoje a Eritreia e o Iêmen. Atravessado o estreito, eles teriam migrado pela costa até Jabel Faya. Essa descoberta colocaria nossa espécie na Ásia antes da massiva erupção de um vulcão na Indonésia, 74 mil anos atrás, que se acredita ter tornado grande parte da Ásia inabitável por milhares de anos.
Se essa descoberta se confirmar (alguns arqueólogos acreditam que talvez essas pontas de machado possam ter sido fabricadas por outra espécie que não o Homo sapiens), a região de Israel e os vales dos Rios Tigre e Eufrates podem não ter sido nosso primeiro lar fora da África. Teremos de ensinar nas escolas que a civilização ocidental não começou nas praias do Mediterrâneo, como ensina a tradição judaico-cristã, mas sim nas costas do Iêmen e do Omã.
BIÓLOGO
MAIS INFORMAÇÕES: THE SOUTHERN ROUTE "OUT OF AFRICA": EVIDENCE FOR AN EARLY EXPANSION OF MODERN HUMANS INTO ARABIA. SCIENCE, VOL. 331, PÁG 453
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