janeiro 31, 2011

15. O eurocentrismo em nosso ensino - alguns dados

Os poucos - mas valorosos! - leitores habituais destas páginas já devem estar acostumados a encontrar aqui comentários pouco elogiosos sobre o ensino de história no Brasil, e talvez também tenham percebido que minha principal queixa é contra o eurocentrismo que predomina desde o ensino fundamental até a universidade, num ciclo autoperpetuador de ignorância em relação ao resto do mundo.

Hoje, enquanto procurava material sobre outros assuntos (chegou a hora de começar a escrever a dissertação de mestrado), encontrei algo que vem ao encontro do que estou dizendo: a dissertação de Isao Ishibashi, intitulada Um estudo comparativo do conteúdo didático da disciplina de História Geral do ensino médio brasileiro e japonês. O dado que quero mostrar está nas páginas 15 e 16, que mostram o resultado de uma pesquisa preliminar feita por Ishibayashi em 1994 sobre a distribuição dos conteúdos em livros didáticos brasileiros e japoneses:

Área                                                           em livros brasileiros          em livros japoneses

Europa                                                                >90%                                c. 50%
Ásia                                                                     c. 2%                                 c. 40%
América Latina                                                    c. 1%                                   c. 2%
América do Norte                                               c. 3%                                   c. 3%
África                                                                    0,3%                                   c. 2% 
Oceania e ilhas do Pacífico                                 0%                                c. 0,5%
Pré-história                                                          3,7%                                c. 2,5%

Os livros japoneses podem não ser perfeitos, mas cabe alguma dúvida de que o conteúdo está melhor distribuído lá do que aqui? Os japoneses estudam até mesmo mais história da América latina do que nós!

O texto de Ishibashi contém outros dados interessantes, incluindo comparações mais recentes (a tese data de 2004), que não reproduzo aqui porque os dados são mais difíceis de comparar - os livros brasileiros analisados por ele são do tipo "integral", com história do Brasil e geral, aumentando muito a porcentagem de história americana. Mesmo com isso, a Europa levou dois terços das páginas, mostrando que pouco ou nada mudou. Para quem quiser, as tabelas estão nas páginas 41 e 89, e nesta última está a prova definitiva de que os deuses têm senso de humor e ironia: os livros japoneses não falam nada sobre o Brasil...

Não é nenhum crime gostar de história europeia, mas não faz o menor sentido manter um sistema de ensino que dá tão pouco espaço ao que aconteceu fora da França e Inglaterra. O ensino não é nem mesmo decentemente eurocêntrico, é oeste-eurocêntrico, já que os autores de nossos livros dificilmente mencionam que existe vida a leste do Reno. Rússia? Ela existia mesmo antes de 1917? Polônia? Hungria? Suécia? Onde fica isso?

Termino com uma passagem de Ishibashi que aponta porque o eurocentrismo é um problema e uma maneira possível de superá-lo em parte - adotando o método japonês de reunir equipes de autores, de diversas áreas, para escrever os livros didáticos:

No Brasil, um ou dois historiadores escrevem os livros que são lançados ao mercado através de
grandes editoras, em geral, de porte e capacidade de distribuição pelo extenso território. No
Japão os livros são escritos por equipes grandes compostas por historiadores especializados
nas diferentes áreas da história, podendo ter cinco, seis, dez ou até cerca de 50 escritores.
Os conteúdos dos livros didáticos adotados no Japão são avaliados e controlados por um
órgão de ensino governamental, mais precisamente, o Ministério de Educação e Ciência,
que visa manter a qualidade, o equilíbrio e a padronização do ensino no país. Portanto não
se trata de crítica, mas de uma simples constatação, e acredito que essa constatação pode
mostrar uma formação básica de conhecimentos históricos no Brasil com abstenções
importantes que levam a uma tendência a ocidentalizar o ensino. Intencional ou não,
acredito que isso pode influenciar a curto e a longo prazo nas relações e negociações com
outros povos, seja no âmbito político, econômico ou social (p. 13).

janeiro 30, 2011

14.Alexandre, o Grande... mistério

Falei anteriormente sobre a historiografia problemática que existe em torno do imperador romano Nero e a dificuldade de que as fontes mais completas que temos sobre ele foram escritas apenas uma ou duas gerações mais tarde, e sua confiabilidade em muitos pontos é duvidosa. A vida dos historiadores seria mais fácil se Nero fosse a única pessoa "importante" sujeita a esse tipo de dificuldade.

Obviamente, as coisas não são tão simples. Existem pessoas que, de uma ou outra maneira, exerceram muito mais influência que Nero e são ainda mais difíceis de investigar. Encabeçando a lista, temos Jesus: não temos nenhum documento produzido por ele ou por alguém que o conhecesse. A atribuição dos evangelhos aos apóstolos, ou a conhecidos deles, é puramente tradicional; os textos cristãos mais antigos, as epístolas de são Paulo, não são de grande ajuda para decifrar o enigma do Jesus histórico, uma vez que, salvo em visões, Paulo nunca viu Jesus. O próprio Paulo é outro mistério, e as teorias sobre ele abundam: desenvolveu o cristianismo ou distorceu-o? Pró ou anti-imperial? Gnóstico ou antignóstico? Quais das epístolas paulinas foram realmente escritas por ele? Até que ponto a narrativa de sua vida no livro dos Atos mostra a verdadeira personalidade do autor das epístolas?

Os espinheiros teológicos ficam para uma outra vez. Por hoje, podemos nos contentar com uma pessoa que, atualmente, não causa grandes controvérsias fora dos Bálcãs: Alexandre III da Macedônia, mais conhecido como Alexandre, o Grande.

(Só para garantir que estamos todos na mesma página: ele também é chamado de Alexandre Magno. Magno significa grande, e certamente não era o sobrenome de Alexandre - e ele não era parente de Carlos Magno.)

Eis a estrutura básica de sua vida: nascido em -356 no reino helenizado da Macedônia, e educado pelo filósofo Aristóteles, Alexandre era filho do rei Filipe II, que ampliou o reino com a conquista de praticamente todas as cidades-estado gregas. Em -336, Filipe foi assassinado por um de seus guardas e Alexandre herdou o trono. Nos anos seguintes, conquistou o império persa e fez uma expedição pela Índia, parando em -326 quando suas tropas recusaram-se a seguir em frente, depois de não voltarem a seus lares por anos. Alexandre então voltou para Babilônia para administrar suas conquistas e planejar novas campanhas que nunca se realizaram, morrendo em junho de -323 de causas misteriosas. Depois de sua morte, seus generais dividiram o império entre si, disseminando a cultura grega pelas regiões conquistadas (não a ponto de apagar as culturas anteriores, mas essa já é outra história).

O império de Alexandre II em sua extensão máxima, cortesia da Wikimedia Commons.


Muito bem, como sabemos desses fatos sobre Alexandre, e o que mais podemos saber a respeito dele? Aqui começa o problema. Vários contemporâneos de Alexandre escreveram a seu respeito, como seu "historiador oficial" Calístenes ou seu general Ptolomeu, que depois tornou-se rei do Egito (alguém lembra do péssimo filme Alexandre, de Oliver Stone? Ptolomeu era o narrador, interpretado por Anthony Hopkins). Contudo, nenhum desses relatos chegou até nós; o que temos são trechos deles citados por historiadores gregos e romanos posteriores, o primeiro dos quais, Diodoro Sículo, viveu muito depois, na metade do século -1. Ou seja, a fonte mais antiga disponível sobre Alexandre surgiu mais de 150 anos depois de sua morte, quando ele já tinha uma reputação mítica, e baseia-se em textos que não merecem confiança cega (será que Ptolomeu, envolvido em guerras com os outros generais sucessores de Alexandre, não tentou destacar sua própria atuação o máximo possível, por exemplo?).

Não quer dizer que não sabemos nada ao certo sobre ele, já que os diversos relatos concordam em vários pontos, permitindo formar uma biografia de Alexandre bem mais detalhada que o esboço que fiz acima. Por outro lado, muitas perguntas ficam sem resposta, ou apenas com respostas muito incertas, seja porque as fontes discordam entre si, seja porque os historiadores antigos não se interessavam por todas as questões que fazemos hoje. Por exemplo, sabemos que Alexandre tentou integrar seu império heterogêneo, promovendo casamentos entre a aristocracia da Macedônia e da Pérsia. Mas nunca saberemos ao certo em que medida isso foi bom senso político ou um desejo pessoal de unificar "gregos" e "bárbaros". Sabemos que, após as conquistas, ele passou a exigir que seus súditos se prostrassem diante dele, o que era habitual na Pérsia, mas chocou os macedônios. Novamente, a intenção é um enigma para nós: a arrogância de um conquistador praticamente invencível ou a vontade de tomar a monarquia persa como modelo para a integração de um império em grande parte persa? O que causou o assassinato de Filipe II, e Alexandre teve algum envolvimento nisso? Só podemos especular, uma vez que o assassino, Pausânias, logo foi capturado e morto, como que prefigurando a morte de JFK. Qual a sexualidade de Alexandre? Do que ele morreu? Que regiões ele poderia ter conquistado se vivesse por mais tempo? Como vamos ter certeza?

Curiosamente, temos uma fonte importante contemporânea a Alexandre, escrita pelos perdedores: os diários astronômicos da Babilônia, que descrevem eventos celestes e acontecimentos terrestres. Essas crônicas só foram descobertas no século 20, e ainda temos apenas fragmentos delas, mas é o suficiente para oferecer uma outra versão dos fatos. Um exemplo: segundo a versão greco-romana tradicional, a batalha de Gaugamela, o grande confronto entre os macedônios de Alexandre e os persas de Dario III, foi um combate épico em que Alexandre, em desvantagem numérica, conseguiu a vantagem através de táticas superiores, até o ponto em que Dario, tomado de medo, fugiu da batalha, abandonando e desmoralizando seus soldados. A versão babilônica é diferente: pouco antes da batalha, um eclipse lunar foi interpretado por persas e babilônios como um sinal da queda de Dario, desmoralizando as tropas. Na batalha em si, os soldados desertaram, tornando Gaugamela mais uma caçada aos fugitivos do que um grande combate.

Sem ser nenhum especialista em Alexandre, me pergunto quanto tempo levará para que essa "visão dos vencidos" seja levada em conta e pesada juntamente com os outros relatos. Provavelmente, muito tempo, se julgarmos pela situação em que está a cultura popular: no filme Alexandre, a batalha de Gaugamela (o grande combate do filme, ocorrido no deserto, e no qual Dario parecia um guarda de trânsito comandando suas tropas com gestos) seguiu totalmente a narrativa greco-romana.

Aos interessados em saber mais:
- Em francês, um artigo interessante, mas acadêmico, sobre as crônicas babilônias e sua contribuição para a história de Alexandre;
- Em inglês, uma discussão sobre Alexandre e as fontes sobre sua vida;
- Também em inglês, uma série de conversas entre os historiadores James Romm e Paul Cartledge a respeito de Alexandre, sua vida, seu legado e suas controvérsias;
- Para os exclusivamente lusófonos, as opções se restringem - a única fonte amplamente disponível sobre Alexandre em português é sua biografia escrita por Plutarco no século 2. Existe uma versão online aqui, com a grande desvantagem de ser uma tradução em segunda mão (grego-francês-português)

janeiro 18, 2011

13. Links

Dois sites novos acrescentados à seção de links:

1) Brasil Recente, de Carlos Fico, professor da UFRJ. O blog é recente, mas os posts que já foram adicionados tratam de vários assuntos: wikileaks, arquivos da ditadura, o discurso de posse de Dilma - enfim, questões de interesse atual discutidas de forma séria e interessante.

2) IHSSJ - Estudos Históricos sobre os Jesuítas, de Jorge Leão, mestre pela UERJ e um dos pouquíssimos brasileiros a realizar pesquisas sobre história do Japão. Como diz o título, o blog fala dos jesuítas, o que não é uma grande restrição: a Companhia de Jesus vem do século 16 até hoje e teve uma atuação importante por quase todo o mundo, do Brasil ao Japão - partindo dos jesuítas, pode-se estudar praticamente qualquer tema de história moderna ou contemporânea. Aos interessados, contribuí com um artigo sobre os jesuítas no Japão. Para quem continua sem saber se realmente se interessa por jesuítas, entre no blog assim mesmo e confira as fotos das igrejas que eles construíram mundo afora.

janeiro 17, 2011

12. Significância, insignificância (ou: a ascensão de Tutankhamon)

Em uma das minhas tirinhas preferidas de Hagar, o Horrível, ele e seu assistente Eddie Sortudo encontram um monumento à la Stonehenge. Eddie pergunta o que é aquilo, e Hagar explica que foi construído por um grande rei do passado, que mobilizou milhares de pessoas por anos para erguer o monumento e imortalizar seu nome. "Quem foi ele?", pergunta Eddie, e Hagar responde: "Ninguém sabe".

Não é uma boa explicação das origens de Stonehenge, da mesma maneira que Hagar não é uma boa representação de um legítimo viking, mas nem por isso é menos válida a reflexão sobre a transitoriedade das coisas humanas: quantas pessoas reais não foram como o rei de que Hagar fala, grandes e poderosos em vida e completamente esquecidos depois?

A resposta, claro, é: ninguém sabe.

Mas, o mundo sendo como é, às vezes também acontece o contrário: pessoas sem grandes realizações ou feitos memoráveis em vida atingem uma certa notoriedade tempos depois. Um dos exemplos mais conhecidos, para os historiadores, é o de Menocchio: um moleiro italiano do século 16 com crenças extremamente heréticas - Deus era o mais sábio dos anjos que criaram o mundo da mesma forma que os vermes criam um queijo, e por aí vai - e uma certa compulsão por anunciá-las para quem quisesse - ou não - ouvir, o que fez com que a Inquisição romana se interessasse por ele. Depois de ser solto com uma advertência em seu primeiro julgamento, Menocchio insistiu em continuar falando publicamente sobre suas crenças, e da segunda vez os inquisidores não foram tão bonzinhos.

Em vida, Menocchio não foi um personagem de grande destaque, mas tornou-se conhecido mundialmente quando o historiador italiano Carlo Ginzburg estudou os registros inquisitoriais do seu caso e fez uma análise de como um moleiro do interior da Itália poderia ter desenvolvido as crenças peculiares de Menocchio, análise que consta em seu livro O queijo e os vermes. Fica a sugestão para quem quiser conhecer um pouco da cultura daquela época, desde as leituras a que Menocchio teve acesso até o que significava cair nas mãos dos inquisidores (o fato de ele só ter sido morto ao reincidir na heresia, por exemplo, deveria ajudar a mostrar que a Inquisição não causou os banhos de sangue que as pessoas costumam imaginar).

Um segundo exemplo pode parecer mais estranho à primeira vista: o faraó Tutankhamon, governante do Egito por dez anos, no final do século 14 a.C. (aproximadamente de -1333 a -1323 - as datas do Egito antigo e outras civilizações contemporâneas estão sujeitas a uma certa incerteza, que aumenta quanto mais retrocedemos no tempo). Alguém poderia perguntar como um faraó poderia ter sido insignificante - governar um país já não é um atestado de relevância? Não nesse caso. Esqueça por um momento a popularidade imensa de Tutankhamon hoje em dia e considere o seguinte: ele subiu ao trono com nove anos. Reinou por mais dez, ou seja, morreu aos dezenove. O Egito estava em crise desde o reinado anterior, do reformador religioso Akhenaton, que costuma ser lembrado por seu monoteísmo, cuja extensão é discutida ainda hoje, e não por ter negligenciado outros aspectos do governo, como a diplomacia ou a economia. Então, ninguém esperava que coubesse a um faraó adolescente a responsabilidade de tirar o país da crise, e o verdadeiro poder estava nas mãos de seus conselheiros, como o general Horemheb, seu sucessor no trono.

Por critérios objetivos, Tutankhamon não teve tempo de se mostrar como um governante bom ou ruim, e seu nome tinha tudo para ficar esquecido nas listas de faraós entre as reformas religiosas malogradas de Akhenaton e o esplendor imperial do governo de Ramsés II, algumas décadas mais tarde. Por muito tempo, realmente foi mais ou menos isso que aconteceu. O ano da virada de Tutankhamon foi até bem recente: 1922, quando o arqueólogo Howard Carter teve a sorte imensa de encontrar uma tumba no Vale dos Reis que, ao contrário de todas as outras já achadas, estava praticamente intacta, com a maior parte de seus tesouros tendo escapado aos saques que já se faziam nos túmulos egípcios desde a antiguidade. O ocupante da tumba e seus tesouros tornaram-se mundialmente conhecidos com a descoberta de Carter, e sua máscara mortuária hoje é tão associada com o antigo Egito quanto as pirâmides ou a Esfinge.

Uma tumba bem escondida e cheia de tesouros: eis o segredo da imortalidade de Tutankhamon.

janeiro 09, 2011

11. Regulamentação (a luta continua)

Segundo informes da Associação Nacional de História (ANPUH), existe esperança de que a nossa profissão seja regulamentada no futuro próximo. Mas nada de concreto ainda:

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Notícias

REGULAMENTAÇÃO DA PROFISSÃO

04/01/2011 No apagar das luzes do processo legislativo, no dia 15 de dezembro, finalmente o Senador Flexa Ribeiro (PSDB/PA), relator do PL 368/2009 na Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania, emitiu seu parecer, sendo favorável a aprovação tanto do projeto quanto da emenda do Senador Álvaro Dias. Embora tenha ficado até o último instante com o projeto, evitando que ele fosse aprovado nesta legislatura, o parecer favorável nos deixa com a esperança de que o mesmo possa vir a prosperar na próxima legislatura. Como a atual se encerrou, o projeto seguiu para o arquivamento. Solicitaremos ao Senador Paulo Paim, autor da proposição, que requeira seu desarquivamento no inicio da próxima legislatura.
Já o projeto de lei que tramita na Câmara dos Deputados foi devolvido à secretaria da Casa pelo Deputado Fernando Nascimento (PT/PE) sem qualquer manifestação, tendo sido o mesmo remetido para arquivamento. Como o Deputado Jovair Arantes foi reeleito e ele foi propositor de um outro projeto sobre o mesmo tema que está anexado ao do Deputado Wilson Santos, solicitaremos a ele que solicite no inicio da próxima legislatura o desarquivamento do projeto.

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Por essas e outras, estou me filiando à ANPUH. Talvez minha anuidade faça alguma diferença na hora de subornar as pessoas certas...

Ah, sim, antes que alguém pergunte: a ANPUH era originalmente a Associação Nacional dos Professores Universitários de História. O seu âmbito foi ampliado, mas a sigla ficou, não sei se por conservadorismo ou por ser mais fácil dizer "anpu" do que "a-ene-agá".

janeiro 03, 2011

10. Lovecraft e a crise do antropocentrismo

Falar de períodos de crise é fácil; definir o que exatamente conta como uma crise é mais difícil. Mesmo assim, não parece exagerado dizer que a primeira metade do século 20 foi uma fase de crise para a civilização ocidental. Se alguém duvida, que vá discutir com Eric Hobsbawm - foi ele que chamou o período de 1914 a 1945 de "Era da Catástrofe".

As duas guerras mundiais desempenharam sua parte nisso, com o ápice da ciência e tecnologia sendo empregado para facilitar a morte em grande escala. Material e moralmente, os países europeus foram abalados pelas guerras - não é por acaso que em 1918 o historiador Oswald Spengler publicou O declínio do Ocidente, livro que pretendia mostrar que as civilizações passavam por fases de ascensão e queda (o título do livro já conta o que ele pensava do estado da sua própria civilização). Com o final da I Guerra, um livro que antes pareceria absurdo tornou-se um grande sucesso. Mas o problema era anterior a 1914, e seus sintomas culturais podem ser percebidos retrospectivamente: o século 20 começou com transformações nas ciências (Einstein e sua teoria da relatividade especial, de 1905), na psicologia (A interpretação dos sonhos, primeiro grande trabalho de Freud, foi publicado em 1899) e na arte (Les demoiselles d'Avignon, de Picasso, de 1907).

As mudanças tinham um vínculo entre si: todas foram no sentido de tornar o mundo um lugar mais difícil de compreender. Einstein substituiu o mundo bem ordenado de Newton por um onde o tempo e o espaço eram relativos; concordemos ou não com a psicanálise, Freud mostrou que não éramoss os seres racionais que pensávamos ser, e nem ao menos os senhores de nossas próprias mentes, sujeitas a influências que nos passam despercebidas; as artes visuais, das quais Picasso é apenas um dos expoentes, afastavam-se cada vez mais do realismo em busca de novos mundos, interiores e imaginativos, a explorar. O ser humano racional, senhor de si e do mundo, estava em baixa.

Como seria de esperar, a crise teve consequências também na literatura - tomando o caso mais famoso, foi em 1922 que James Joyce publicou Ulysses com sua narrativa tortuosa e repleta de fluxos de consciência. Mas Joyce não era o único escritor importante na ativa; outro autor que transformou a literatura, e infelizmente um tanto menos conhecido no Brasil, foi o americano Howard Phillips Lovecraft (1890-1937).

Influenciado principalmente por Poe, Lovecraft foi um dos principais escritores de histórias de terror do século 20. Sua grande contribuição ao gênero, que reflete bem a época em que viveu, consistiu em tirar a importância dos seres humanos e descrever um universo que não foi feito para nós e que não fomos feitos para compreender.

Para a literatura de terror anterior, a humanidade estava, de alguma forma, no centro do palco. Nos contos de Poe, o terror estava na insanidade e naquilo que um louco é capaz de fazer (O gato preto, Coração delator, O barril de Amontillado - a lista dos loucos assassinos em Poe não é pequena). Frankenstein, de Mary Shelley, não é sobre um monstro ensandecido, mas sobre a responsabilidade de um criador negligente, o dr. Frankenstein, por sua criatura imperfeita, que ao ser abandonada por seu criador e rejeitada pelo mundo acaba trilhando o caminho do mal - a analogia com a relação entre o Deus cristão e a humanidade é evidente. Drácula, de Bram Stoker, é sobre a luta dos protagonistas armados com a ciência moderna para proteger a civilização inglesa - e as mulheres inglesas - de um monstro primitivo, perigoso mas infantil, saído do interior da Transilvânia, além dos limites da Europa civilizada. E, como os cineastas posteriores mostraram com clareza excessiva, é também sobre o fascínio e o medo da sedução: afinal, o vampiro sai à noite em busca de virgens inocentes, que depois de seu ataque são transformadas em mulheres agressivas e também sedutoras - de novo, a metáfora está aí para quem quiser ver. E a lista poderia seguir porque, de alguma forma, as pessoas ocupam lugar de destaque nas histórias de terror: contos de fantasmas com suas tragédias antigas, O médico e o monstro, em que o monstro é o lado negro do ser humano, e assim vai...

Até que Lovecraft tirou esse papel de destaque que ocupávamos até então. Suas histórias, como quaisquer outras de terror, são sobre medos humanos, mas o medo aqui é o de ser uma criatura insignificante vivendo em um universo estranho e hostil, que parece mais estranho e hostil quanto melhor o compreendemos. Na mitologia de Lovecraft, o mundo não é governado por deuses ou demônios, que ao menos são seres com motivações humanas e compreensíveis, e que se ocupam com a humanidade, seja para salvá-la ou corrompê-la. A perspectiva lovecraftiana é pós-religiosa: os "deuses" são seres alienígenas cujas motivações são incompreensíveis, cujas formas verdadeiras podem enlouquecer uma mente humana limitada, e que simplesmente não se importam com a humanidade, estando tão acima dela que nem percebem sua existência. A humanidade, longe de desempenhar um papel cósmico central, é uma espécie comum que apenas conseguiu dominar um planeta comum porque os seres realmente avançados se afastaram temporariamente. Mas eles voltarão:

Nem devemos pensar que o homem é o mais antigo ou o último dos mestres da Terra, ou que a vida e substância comum estão sozinhas. Os Antigos eram, os Antigos são e os Antigos serão. Não nos espaços que conhecemos, mas entre eles, eles andam serenos e primevos, sem dimensões e invisíveis para nós. Yog-Sothoth conhece o portal. Yog-Sothoth é o portal. Yog-Sothoth é a chave e o guardião do portal. Passado, presente, futuro, todos são um em Yog-Sothoth. Ele sabe por onde os Antigos entraram no passado, e por onde Eles entrarão novamente. Ele sabe onde Eles percorreram os campos da Terra, e onde Eles ainda os percorrem, e porque ninguém pode observá-los enquanto andam. (...) Sua mão está em vossas gargantas, e nem assim os vedes; e Sua morada é una com seu umbral protegido. Yog-Sothoth é a chave do portal, onde as esferas se encontram. O homem governa agora onde Eles já governaram; Eles em breve governarão onde o homem governa agora. Depois do verão vem o inverno, depois do inverno, o verão. Eles aguardam pacientes e potentes, pois aqui Eles reinarão novamente. (O horror de Dunwich, c. 5)

Ainda pior que a existência de monstros completamente desumanos que ameaçam a humanidade sem nem perceber é o problema de esses monstros serem reflexos de um cosmos não menos desumano.

A coisa mais misericordiosa do mundo, acho, é a inabilidade da mente humana de correlacionar todos seus conteúdos. Vivemos em uma ilha plácida de ignorância em meio aos mares negros do infinito, e não fomos feitos para viajar longe. As ciências, cada uma avançando em sua própria direção, até o momento nos fizeram pouco mal; mas algum dia a reunião do saber agora desconexo abrirá panoramas tão aterrorizantes da realidade, e de nossa posição assustadora nela, que iremos ou enlouquecer com a revelação ou fugir da luz rumo à paz e segurança de uma nova Idade das Trevas (O chamado de Cthulhu, c. 1).


Talvez por isso Lovecraft seja tão atual mais de 70 anos depois de sua morte: o medo de que ele fala continua vivo sob a superfície. Como se sentir confortável com o pensamento de que vivemos em um universo que não surgiu por nenhum motivo aparente, evoluímos como qualquer outra espécie, sem um desígnio especial por trás disso, nossos cérebros não foram feitos para compreender a verdadeira estrutura do mundo (quem realmente consegue compreender a vastidão de um ano-luz, de um milhão de anos, ou a estranheza de que tudo aquilo que vemos ao nosso redor e consideramos sólido, inclusive nós mesmos, são aglomerados de pequenas partículas em meio ao vazio?), e não há nenhuma base segura no mundo para nossos ideais de beleza, paz, razão e justiça?

Algumas religiões oferecem uma resposta, identificando o sentido do mundo com a vontade divina. Uma alternativa não religiosa foi pensada pelos filósofos existencialistas (de Nietzsche, que viveu antes de surgir o termo existencialista, em diante): o sentido não é inerente ao mundo, então só pode ser criado por nós. Acho que os existencialistas estão mais próximos da verdade, o que não deixa de ser uma pena: o existencialismo não oferece o conforto emocional das religiões.

Qualquer que seja a sua resposta, dê uma chance aos contos de Lovecraft. Existem traduções para o português à venda nas livrarias, e a versão original em inglês já pode ser lida online no site do Gutenberg Australia.
Veja como você reaje à perspectiva de um mundo assustadoramente sem sentido, e então olhe ao redor...