Falei anteriormente sobre a historiografia problemática que existe em torno do imperador romano Nero e a dificuldade de que as fontes mais completas que temos sobre ele foram escritas apenas uma ou duas gerações mais tarde, e sua confiabilidade em muitos pontos é duvidosa. A vida dos historiadores seria mais fácil se Nero fosse a única pessoa "importante" sujeita a esse tipo de dificuldade.
Obviamente, as coisas não são tão simples. Existem pessoas que, de uma ou outra maneira, exerceram muito mais influência que Nero e são ainda mais difíceis de investigar. Encabeçando a lista, temos Jesus: não temos nenhum documento produzido por ele ou por alguém que o conhecesse. A atribuição dos evangelhos aos apóstolos, ou a conhecidos deles, é puramente tradicional; os textos cristãos mais antigos, as epístolas de são Paulo, não são de grande ajuda para decifrar o enigma do Jesus histórico, uma vez que, salvo em visões, Paulo nunca viu Jesus. O próprio Paulo é outro mistério, e as teorias sobre ele abundam: desenvolveu o cristianismo ou distorceu-o? Pró ou anti-imperial? Gnóstico ou antignóstico? Quais das epístolas paulinas foram realmente escritas por ele? Até que ponto a narrativa de sua vida no livro dos Atos mostra a verdadeira personalidade do autor das epístolas?
Os espinheiros teológicos ficam para uma outra vez. Por hoje, podemos nos contentar com uma pessoa que, atualmente, não causa grandes controvérsias fora dos Bálcãs: Alexandre III da Macedônia, mais conhecido como Alexandre, o Grande.
(Só para garantir que estamos todos na mesma página: ele também é chamado de Alexandre Magno. Magno significa
grande, e certamente não era o sobrenome de Alexandre - e ele
não era parente de Carlos Magno.)
Eis a estrutura básica de sua vida: nascido em -356 no reino helenizado da Macedônia, e educado pelo filósofo Aristóteles, Alexandre era filho do rei Filipe II, que ampliou o reino com a conquista de praticamente todas as cidades-estado gregas. Em -336, Filipe foi assassinado por um de seus guardas e Alexandre herdou o trono. Nos anos seguintes, conquistou o império persa e fez uma expedição pela Índia, parando em -326 quando suas tropas recusaram-se a seguir em frente, depois de não voltarem a seus lares por anos. Alexandre então voltou para Babilônia para administrar suas conquistas e planejar novas campanhas que nunca se realizaram, morrendo em junho de -323 de causas misteriosas. Depois de sua morte, seus generais dividiram o império entre si, disseminando a cultura grega pelas regiões conquistadas (não a ponto de apagar as culturas anteriores, mas essa já é outra história).
 |
O império de Alexandre II em sua extensão máxima, cortesia da Wikimedia Commons. |
Muito bem, como sabemos desses fatos sobre Alexandre, e o que mais podemos saber a respeito dele? Aqui começa o problema. Vários contemporâneos de Alexandre escreveram a seu respeito, como seu "historiador oficial" Calístenes ou seu general Ptolomeu, que depois tornou-se rei do Egito (alguém lembra do péssimo filme
Alexandre, de Oliver Stone? Ptolomeu era o narrador, interpretado por Anthony Hopkins). Contudo, nenhum desses relatos chegou até nós; o que temos são trechos deles citados por historiadores gregos e romanos posteriores, o primeiro dos quais, Diodoro Sículo, viveu muito depois, na metade do século -1. Ou seja, a fonte mais antiga disponível sobre Alexandre surgiu mais de 150 anos depois de sua morte, quando ele já tinha uma reputação mítica, e baseia-se em textos que não merecem confiança cega (será que Ptolomeu, envolvido em guerras com os outros generais sucessores de Alexandre, não tentou destacar sua própria atuação o máximo possível, por exemplo?).
Não quer dizer que não sabemos nada ao certo sobre ele, já que os diversos relatos concordam em vários pontos, permitindo formar uma biografia de Alexandre bem mais detalhada que o esboço que fiz acima. Por outro lado, muitas perguntas ficam sem resposta, ou apenas com respostas muito incertas, seja porque as fontes discordam entre si, seja porque os historiadores antigos não se interessavam por todas as questões que fazemos hoje. Por exemplo, sabemos que Alexandre tentou integrar seu império heterogêneo, promovendo casamentos entre a aristocracia da Macedônia e da Pérsia. Mas nunca saberemos ao certo em que medida isso foi bom senso político ou um desejo pessoal de unificar "gregos" e "bárbaros". Sabemos que, após as conquistas, ele passou a exigir que seus súditos se prostrassem diante dele, o que era habitual na Pérsia, mas chocou os macedônios. Novamente, a intenção é um enigma para nós: a arrogância de um conquistador praticamente invencível ou a vontade de tomar a monarquia persa como modelo para a integração de um império em grande parte persa? O que causou o assassinato de Filipe II, e Alexandre teve algum envolvimento nisso? Só podemos especular, uma vez que o assassino, Pausânias, logo foi capturado e morto, como que prefigurando a morte de JFK. Qual a sexualidade de Alexandre? Do que ele morreu? Que regiões ele poderia ter conquistado se vivesse por mais tempo? Como vamos ter certeza?
Curiosamente, temos uma fonte importante contemporânea a Alexandre, escrita pelos perdedores: os diários astronômicos da Babilônia, que descrevem eventos celestes e acontecimentos terrestres. Essas crônicas só foram descobertas no século 20, e ainda temos apenas fragmentos delas, mas é o suficiente para oferecer uma outra versão dos fatos. Um exemplo: segundo a versão greco-romana tradicional, a batalha de Gaugamela, o grande confronto entre os macedônios de Alexandre e os persas de Dario III, foi um combate épico em que Alexandre, em desvantagem numérica, conseguiu a vantagem através de táticas superiores, até o ponto em que Dario, tomado de medo, fugiu da batalha, abandonando e desmoralizando seus soldados. A versão babilônica é diferente: pouco antes da batalha, um eclipse lunar foi interpretado por persas e babilônios como um sinal da queda de Dario, desmoralizando as tropas. Na batalha em si, os soldados desertaram, tornando Gaugamela mais uma caçada aos fugitivos do que um grande combate.
Sem ser nenhum especialista em Alexandre, me pergunto quanto tempo levará para que essa "visão dos vencidos" seja levada em conta e pesada juntamente com os outros relatos. Provavelmente, muito tempo, se julgarmos pela situação em que está a cultura popular: no filme
Alexandre, a batalha de Gaugamela (o grande combate do filme, ocorrido no deserto, e no qual Dario parecia um guarda de trânsito comandando suas tropas com gestos) seguiu totalmente a narrativa greco-romana.
Aos interessados em saber mais:
- Em francês, um
artigo interessante, mas acadêmico, sobre as crônicas babilônias e sua contribuição para a história de Alexandre;
- Em inglês, uma
discussão sobre Alexandre e as fontes sobre sua vida;
- Também em inglês, uma série de
conversas entre os historiadores James Romm e Paul Cartledge a respeito de Alexandre, sua vida, seu legado e suas controvérsias;
- Para os exclusivamente lusófonos, as opções se restringem - a única fonte amplamente disponível sobre Alexandre em português é sua biografia escrita por Plutarco no século 2. Existe uma versão online
aqui, com a grande desvantagem de ser uma tradução em segunda mão (grego-francês-português)