Um texto do historiador Carlos Fico que dá o que pensar. Por que a população brasileira em geral não está dando a mínima para as investigações da Comissão da Verdade? A resposta que ele oferece faz sentido: porque existe uma ênfase grande na repressão aos militantes de esquerda e membros da luta armada, que (isso ele não diz com todas as letras, mas se subentende) tinham uma posição minoritária e não compartilhada por muitos. A solução para isso: mudar o foco para as arbitrariedades e desmandos cometidos em um nível mais cotidiano, coisas como o artista que era censurado sem saber o motivo ou o político que era investigado por vingança de um rival, entre outros exemplos que Fico dá.
Ou, colocando de outra forma: é preciso resgatar as pessoas comuns que viveram no período e não necessariamente se identificavam quer com os militares quer com a guerrilha.
A opinião dele vai ser levada em conta? Dificilmente. Mas o que ele sugere é exatamente o tipo de investigação que mostraria que não eram apenas os guerrilheiros que sofreram, que poderia destruir o velho mito dos saudosistas do governo militar: "quem não criava problemas não tinha o que temer".
------------------------------------------------------------------------------------------
Verdade para todos
Carlos Fico
Por que os trabalhos da Comissão da Verdade mobilizam apenas a militância dos direitos humanos?
Quando a Comissão Interamericana de Direitos Humanos visitou a Argentina, em 1979, ainda durante a ditadura, formaram-se filas de pessoas que traziam suas denúncias. Depois do término do regime militar, a entrega e publicação do relatório final da Comisión Nacional sobre la Desaparición de Personas alcançou grande repercussão.
A Comissão da Verdade da África do Sul transmitiu suas audiências pela TV e pelo rádio.
A comissão brasileira está há seis meses trabalhando, desde março deste ano. Somente neste mês de setembro decidiu que vai mesmo enfatizar a ditadura militar (e não todo o período 1946/1988, como estabelece a lei que a criou) e que apenas investigará os "agentes públicos" e não os adversários do regime, resposta à polêmica sobre investigar apenas um ou os dois "lados".
Nos eventos públicos que promove, a frequência é quase sempre a mesma, reunindo vítimas e parentes de vítimas da repressão durante o regime militar, militantes que lutam pela defesa dos direitos humanos, segmentos organizados da sociedade (movimento estudantil, alguns sindicatos), pesquisadores e quase só. As questões que a Comissão da Verdade tem levantado aparentemente não interessam à maioria da sociedade.
Isso não mudará se alguma providência não for tomada. Em agosto passado, atendendo a convite, falei à comissão sobre as razões do golpe de 1964. No final da minha exposição, pedi licença para considerar outras questões. Afirmei que seria importante incluir as "pessoas comuns" no rol das vítimas.
De fato, muitas pessoas que não participaram da luta armada, ou sequer faziam oposição ostensiva à ditadura militar, foram vítimas do regime. Mas quase não se fala delas. Um professor universitário, por exemplo, pode ter sido cogitado para um cargo de chefia qualquer em sua universidade, mas não foi promovido porque a espionagem da época impediu. Casos assemelhados podem ter acontecido nas empresas estatais e autarquias. Essas pessoas podem nem ao menos saber o que lhes aconteceu.
Políticos inexpressivos de pequenas cidades podem ter sido injustamente investigados pela Comissão Geral de Investigações (um tribunal de exceção que julgava sumariamente supostos corruptos) apenas porque um adversário local, por vingança pessoal, enviou uma carta acusando-o.
Cineastas, dramaturgos, atores, escritores e músicos foram censurados. Não necessariamente porque produziam obras de arte críticas, de protesto, mas, por exemplo, porque o censor da época identificou algo de "imoral" em seus trabalhos.
A abordagem desses e de outros casos assemelhados pela Comissão da Verdade talvez conferisse outra dimensão aos seus trabalhos, chamando a atenção da sociedade para o fato de que a ditadura militar brasileira foi muito violenta - mesmo que no Brasil não tenha havido tantos mortos quanto no caso da Argentina. Nesses exemplos não houve tortura ou assassinato, mas eles também são expressão de um tipo de violência, decorrente da capacidade do regime brasileiro de invadir o cotidiano das pessoas e - segundo seus critérios obscuros - fazer o que quisesse.
Essas histórias estão guardadas nos documentos recentemente liberados pelo Arquivo Nacional. Seria preciso pesquisá-los.
Quando a Comissão Interamericana de Direitos Humanos visitou a Argentina, em 1979, ainda durante a ditadura, formaram-se filas de pessoas que traziam suas denúncias. Depois do término do regime militar, a entrega e publicação do relatório final da Comisión Nacional sobre la Desaparición de Personas alcançou grande repercussão.
A Comissão da Verdade da África do Sul transmitiu suas audiências pela TV e pelo rádio.
A comissão brasileira está há seis meses trabalhando, desde março deste ano. Somente neste mês de setembro decidiu que vai mesmo enfatizar a ditadura militar (e não todo o período 1946/1988, como estabelece a lei que a criou) e que apenas investigará os "agentes públicos" e não os adversários do regime, resposta à polêmica sobre investigar apenas um ou os dois "lados".
Nos eventos públicos que promove, a frequência é quase sempre a mesma, reunindo vítimas e parentes de vítimas da repressão durante o regime militar, militantes que lutam pela defesa dos direitos humanos, segmentos organizados da sociedade (movimento estudantil, alguns sindicatos), pesquisadores e quase só. As questões que a Comissão da Verdade tem levantado aparentemente não interessam à maioria da sociedade.
Isso não mudará se alguma providência não for tomada. Em agosto passado, atendendo a convite, falei à comissão sobre as razões do golpe de 1964. No final da minha exposição, pedi licença para considerar outras questões. Afirmei que seria importante incluir as "pessoas comuns" no rol das vítimas.
De fato, muitas pessoas que não participaram da luta armada, ou sequer faziam oposição ostensiva à ditadura militar, foram vítimas do regime. Mas quase não se fala delas. Um professor universitário, por exemplo, pode ter sido cogitado para um cargo de chefia qualquer em sua universidade, mas não foi promovido porque a espionagem da época impediu. Casos assemelhados podem ter acontecido nas empresas estatais e autarquias. Essas pessoas podem nem ao menos saber o que lhes aconteceu.
Políticos inexpressivos de pequenas cidades podem ter sido injustamente investigados pela Comissão Geral de Investigações (um tribunal de exceção que julgava sumariamente supostos corruptos) apenas porque um adversário local, por vingança pessoal, enviou uma carta acusando-o.
Cineastas, dramaturgos, atores, escritores e músicos foram censurados. Não necessariamente porque produziam obras de arte críticas, de protesto, mas, por exemplo, porque o censor da época identificou algo de "imoral" em seus trabalhos.
A abordagem desses e de outros casos assemelhados pela Comissão da Verdade talvez conferisse outra dimensão aos seus trabalhos, chamando a atenção da sociedade para o fato de que a ditadura militar brasileira foi muito violenta - mesmo que no Brasil não tenha havido tantos mortos quanto no caso da Argentina. Nesses exemplos não houve tortura ou assassinato, mas eles também são expressão de um tipo de violência, decorrente da capacidade do regime brasileiro de invadir o cotidiano das pessoas e - segundo seus critérios obscuros - fazer o que quisesse.
Essas histórias estão guardadas nos documentos recentemente liberados pelo Arquivo Nacional. Seria preciso pesquisá-los.
Nenhum comentário:
Postar um comentário