E voltamos com a Rádio "Músicas de Guerra". Hoje, duas canções russas.
A primeira é o clássico soviético da Segunda Guerra (ou Grande Guerra Patriótica, como chamam por lá), Katyusha. A melodia foi utilizada logo depois em outros países, como pelos resistentes italianos em seu Fischia il vento, que vimos anteriormente. Já a letra é quase um Erika ao contrário: a jovem Katyusha, diminutivo de Ekaterina, espera seu amado que cumpre o dever na guerra.
Existem inúmeras versões na internet, mas aqui vai uma que ao menos tem a tradução para o espanhol:
Em seguida, uma anterior, da época da Guerra Russo-Japonesa.
O que foi a Guerra Russo-Japonesa? Nada menos que um dos conflitos mais importantes do século e do qual quase nada se sabe por aqui. Em 1904 e 1905, a Rússia czarista e o império japonês lutaram para decidir qual seria a potência dominante na Manchúria (região nordeste da China) e Coreia. Os japoneses venceram, com consequências importantes:
a) mostrou a todo o mundo que um país asiático poderia derrotar um europeu;
b) firmou o expansionismo japonês na Ásia continental, o que mais tarde causaria sua tentativa de conquistar a China e seu envolvimento na Segunda Guerra;
c) os gastos na guerra e a derrota solaparam o prestígio do czar e precipitaram a Revolução de 1905, um prólogo moderado do que seria 1917.
Voltando à música, chama-se Nos morros da Manchúria, composta por Ilya Shatrov após a derrota russa. É um lamento aos soldados russos mortos na Manchúria e a promessa de que serão lembrados e vingados:
Um texto do historiador Carlos Fico que dá o que pensar. Por que a população brasileira em geral não está dando a mínima para as investigações da Comissão da Verdade? A resposta que ele oferece faz sentido: porque existe uma ênfase grande na repressão aos militantes de esquerda e membros da luta armada, que (isso ele não diz com todas as letras, mas se subentende) tinham uma posição minoritária e não compartilhada por muitos. A solução para isso: mudar o foco para as arbitrariedades e desmandos cometidos em um nível mais cotidiano, coisas como o artista que era censurado sem saber o motivo ou o político que era investigado por vingança de um rival, entre outros exemplos que Fico dá.
Ou, colocando de outra forma: é preciso resgatar as pessoas comuns que viveram no período e não necessariamente se identificavam quer com os militares quer com a guerrilha.
A opinião dele vai ser levada em conta? Dificilmente. Mas o que ele sugere é exatamente o tipo de investigação que mostraria que não eram apenas os guerrilheiros que sofreram, que poderia destruir o velho mito dos saudosistas do governo militar: "quem não criava problemas não tinha o que temer".
Por que os trabalhos da Comissão da Verdade mobilizam apenas a militância dos direitos humanos? Quando a Comissão
Interamericana de Direitos Humanos visitou a Argentina, em 1979, ainda
durante a ditadura, formaram-se filas de pessoas que traziam suas
denúncias. Depois do término do regime militar, a entrega e publicação
do relatório final da Comisión Nacional sobre la Desaparición de Personas alcançou grande repercussão. A Comissão da Verdade da África do Sul transmitiu suas audiências pela TV e pelo rádio. A comissão
brasileira está há seis meses trabalhando, desde março deste ano.
Somente neste mês de setembro decidiu que vai mesmo enfatizar a ditadura
militar (e não todo o período 1946/1988, como estabelece a lei que a
criou) e que apenas investigará os "agentes públicos" e não os
adversários do regime, resposta à polêmica sobre investigar apenas um ou
os dois "lados". Nos eventos
públicos que promove, a frequência é quase sempre a mesma, reunindo
vítimas e parentes de vítimas da repressão durante o regime militar,
militantes que lutam pela defesa dos direitos humanos, segmentos
organizados da sociedade (movimento estudantil, alguns sindicatos),
pesquisadores e quase só. As questões que a Comissão da Verdade tem
levantado aparentemente não interessam à maioria da sociedade. Isso não mudará se
alguma providência não for tomada. Em agosto passado, atendendo a
convite, falei à comissão sobre as razões do golpe de 1964. No final da
minha exposição, pedi licença para considerar outras questões. Afirmei
que seria importante incluir as "pessoas comuns" no rol das vítimas. De fato, muitas
pessoas que não participaram da luta armada, ou sequer faziam oposição
ostensiva à ditadura militar, foram vítimas do regime. Mas quase não se
fala delas. Um professor universitário, por exemplo, pode ter sido
cogitado para um cargo de chefia qualquer em sua universidade, mas não
foi promovido porque a espionagem da época impediu. Casos assemelhados
podem ter acontecido nas empresas estatais e autarquias. Essas pessoas
podem nem ao menos saber o que lhes aconteceu. Políticos
inexpressivos de pequenas cidades podem ter sido injustamente
investigados pela Comissão Geral de Investigações (um tribunal de
exceção que julgava sumariamente supostos corruptos) apenas porque um
adversário local, por vingança pessoal, enviou uma carta acusando-o. Cineastas,
dramaturgos, atores, escritores e músicos foram censurados. Não
necessariamente porque produziam obras de arte críticas, de protesto,
mas, por exemplo, porque o censor da época identificou algo de "imoral"
em seus trabalhos.
A abordagem desses e
de outros casos assemelhados pela Comissão da Verdade talvez conferisse
outra dimensão aos seus trabalhos, chamando a atenção da sociedade para
o fato de que a ditadura militar brasileira foi muito violenta - mesmo
que no Brasil não tenha havido tantos mortos quanto no caso da
Argentina. Nesses exemplos não houve tortura ou assassinato, mas eles também são expressão de um tipo de violência, decorrente da capacidade do regime brasileiro de invadir o cotidiano das pessoas e - segundo seus critérios obscuros- fazer o que quisesse. Essas histórias estão guardadas nos documentos recentemente liberados pelo Arquivo Nacional. Seria preciso pesquisá-los.
O objetivo de hoje é mostrar que o YouTube é um acervo audiovisual gigantesco e que, se bem peneirado, pode mostrar muitas coisas interessantes além das últimas músicas de sucesso. O tema da vez, escolhido sem nenhum motivo em particular, é "músicas relacionadas a guerras" - em princípio, qualquer relação conta: músicas militares, anti-guerra, que se tornaram populares em época de guerra, etc. Vou precisar de vários posts, pois a seleção de hoje mal começa a dar conta das possibilidades. Para começar, algumas da Segunda Guerra Mundial:
A primeira se chama Le chant des partisans (A canção dos resistentes), uma das principais músicas da Resistência francesa contra a ocupação nazista:
Ami, entends-tu
Le vol noir des corbeaux
Sur nos plaines?
Ami, entends-tu
Les cris sourds du pays
Qu'on enchaîne?
Ohé! partisans,
Ouvriers et paysans,
C'est l'alarme!
Ce soir l'ennemi
Connaîtra le prix du sang
Et des larmes!
Amigo, ouves
o voo negro dos corvos
nas nossas planícies?
Amigo, ouves
os gritos surdos do país
que acorrentam?
Oh resistente,
Operários e Camponeses,
É o alarme!
Esta noite o inimigo
Conhecerá o preço do sangue
e das lágrimas!
Montez de la mine,
Descendez des collines,
Camarades!
Sortez de la paille
Les fusils, la mitraille,
Les grenades...
Ohé! les tueurs,
A la balle et au couteau,
Tuez vite!
Ohé! saboteur,
Attention à ton fardeau:
Dynamite!
Subam das minas
Desçam das colinas
Camaradas!
Tirem dos fardos de palha
As espingardas, as munições,
as granadas
Matadores,
com balas e com facas,
matai depressa!
Sabotador!
Cuidado com o teu fardo
Dinamite!
C'est nous qui brisons
Les barreaux des prisons
Pour nos frères,
La haine à nos trousses
Et la faim qui nous pousse,
La misère...
Il y a des pays
Ou les gens au creux de lits
Font des rêves;
Ici, nous, vois-tu,
Nous on marche et nous on tue,
Nous on crève.
Somos nós que quebramos
as barras das prisões
para os nossos irmãos,
o ódio que nos persegue
a fome que nos empurra
A miséria ...
Há países onde na cama
as pessoas sonham;
Aqui, nós, vê-la tu,
Nós marchamos e matamos
nós morremos.
Ici chacun sait
Ce qu'il veut, ce qui'il fait
Quand il passe...
Ami, si tu tombes
Un ami sort de l'ombre
A ta place.
Demain du sang noir
Séchera au grand soleil
Sur les routes.
Sifflez, compagnons,
Dans la nuit la Liberté
Nous écoute...
Aqui cada um sabe
o que quer, o que faz
quando passa ...
Amigo se tu caíres
Outro amigo sai da sombra
No teu lugar.
Amanhã o sangue negro
secará ao sol
nas estradas
assobiai, companheiros,
Na noite a liberdade,
ouve-nos ...
A segunda música é Fischia il vento (Sopra o vento), da resistência italiana. Mais enérgica, com a melodia da canção russa Katyusha, e muito mais comunista que sua contraparte francesa:
Não encontrei uma tradução da letra em português, mas é bastante inocente: um soldado vê uma flor de urze (em alemão, Erika) no campo e se lembra de sua noiva que tem o mesmo nome. Infelizmente essa canção tão bonita foi emporcalhada por associação com os nazistas - era a música de marcha da Waffen-SS...
É com alegria que revelo ao mundo o resultado de dois anos de trabalho. Certamente não está perfeita - nada nunca chega a esse ponto - mas acho honestamente que ficou bastante satisfatória. Quem tiver curiosidade sobre um dos capítulos menos conhecidos da história legal e cultural brasileira pode encontrar o texto completo aqui.