O blog Orientalismo, de André Bueno, está com uma ótima novidade: uma tradução em andamento das obras de Confúcio. A primeira parte está disponível neste link. A iniciativa é mais importante do que parece porque, mesmo Confúcio sendo um pilar da filosofia chinesa, as traduções são raras e normalmente de segunda mão - meu exemplar dos Analectos, da L&PM, foi retraduzido do francês.
Para que os interessados possam tirar melhor proveito do texto, pensei que valeria a pena contextualizar Confúcio, que quase todo mundo só conhece de nome. Não sou sinólogo, então vou ficar no básico, mas isso já pode ser um avanço em comparação com o silêncio que reina aqui em torno do pensamento chinês.
Melhor dizendo, Confúcio não é conhecido aqui nem de nome. Confúcio não se chamava assim. Esse nome é um aportuguesamento do latim Confucius, que foi como os jesuítas - primeiros ocidentais a manterem um contato regular e intenso com a China e a se interessarem por suas tradições cuturais - adaptaram a forma como o pensador é conhecido entre os chineses: Kongzi, ou, literalmente, Mestre Kong. Sim, ele se chamava Kong. Mas como algumas tradições são difíceis de mudar, vou continuar a chamá-lo de Confúcio aqui, e todos vão saber na hora de quem estou falando.
Confúcio viveu de -551 a -479, o chamado Período da Primavera e Outono, em que a China, até então governada pela dinastia Zhou (-1046 - -256), fragmentou-se em vários pequenos reinos, com os Zhou tendo poder apenas nominal sobre seus "vassalos". Aos que pensam que a China é milenar e imutável, é bom ver o que exatamente era a China de então:
No mapa maior, os principais reinos da época de Confúcio, com destaque para o reino ocidental de Qin, que mais tarde unificou toda a região. No mapa menor acima à esquerda, a comparação entre a área ocupada por esses reinos e a China atual, imensamente maior, fruto de muitas migrações e conquistas ao longo dos séculos. Mas essas são outras histórias.
Confúcio nasceu no reino de Lu em uma família empobrecida, subindo na vida até se tornar ministro da Justiça de Lu. Infelizmente para ele, o duque de Lu estava preocupado apenas com os próprios prazeres, e os projetos confucianos de reformar o governo fracassaram por falta de apoio. Decepcionado, ele abandonou o cargo e, depois de outras derrotas na vida pública tentando expor suas ideias em outros reinos, passou os últimos anos de vida como professor - pense não em um professor moderno em sua sala de aula, mas em alguém como Sócrates, com um grupo de discípulos interessados no pensamento do mestre.
Embora se atribuam vários clássicos chineses a Confúcio, muito possivelmente ele não escreveu nenhum deles. Mesmo a sua obra principal, os Analectos (=aforismos, fragmentos literários), não foi escrita por ele, mas compilada postumamente por seus discípulos, que reuniram o que lembravam dos ditos e feitos do mestre.
O pensamento confuciano, negligenciado durante a vida de seu autor, acabou triunfando mais tarde, e ele se tornou o equivalente chinês do que Platão ou Aristóteles foram no Ocidente: pontos de referência inevitáveis para qualquer um que se pretendesse culto, mesmo que não concordasse com seu pensamento. Países próximos à China, como a Coreia e o Japão, importaram o confucionismo, e as ideias de Confúcio foram interpretadas, reinterpretadas e transformadas por séculos a fio.
Confúcio nunca expôs um sistema filosófico rígido, mas o seu pensamento tinha alguns pontos centrais. Para começar, ele não se considerava um inovador, e sim um divulgador das boas ideias antigas.
O Mestre disse: eu repasso, não invento. Confio no passado, e o amo.
Sem ser exatamente um ateu, seria possível dizer que Confúcio era arreligioso, que os assuntos religiosos não o interessavam. O que ele jamais negou foi o conceito chinês de Céu, que não seria uma entidade, mas algo como "a ordem natural do mundo", "a natureza das coisas".
Fanchi perguntou o que é sabedoria. O Mestre disse: cuide do povo,
respeite os deuses e espíritos - mas sem se envolver com eles. Isso é
sabedoria. Fanchi perguntou o que era bondade. O Mestre disse: tente ser
bom, isso é bondade.
Wangsunjia perguntou: ‘homenageie o deus da cozinha mais do que o deus
da casa’, o que significa? O Mestre disse: bobagem! Se você ofender o
Céu, qualquer prece é inútil.
Zilu perguntou: como se serve os espíritos e os deuses? O Mestre disse:
aprenda a servir às pessoas, depois pense em servir aos deuses. Zilu
perguntou sobre a morte. O Mestre disse: aprenda antes a viver, depois
aprenda sobre a morte. [ou: aprenda sobre a vida, você conhecerá a
morte]
Na visão confucionista, no centro estava o homem. Seu ideal humano era o junzi, cavalheiro ou, como André Bueno preferiu traduzir, educado: amigo do conhecimento e sempre disposto a aprender mais e, ao mesmo tempo, plenamente inserido em sua sociedade, consciente de seus deveres. interagindo com as pessoas de forma bondosa e contribuindo para a melhoria social através do emprego de seu saber e virtudes. O cultivo de si mesmo era a sua grande preocupação, não a acumulação de bens materiais.
Perguntaram pra Confúcio; por que você não está no governo? O Mestre
disse: no Tratado dos Livros está escrito; ‘pratique a piedade filial
com a família e o altruísmo com as pessoas e você está contribuindo para
o governo’. Isso também é contribuir com a sociedade, não é preciso
estar no governo.
O Mestre disse: riqueza e posição todo mundo quer, mas se o caminho for
errado, desista. Pobreza e esquecimento todo mundo detesta, mas se o
caminho for correto, continue. O Educado nunca abandona o humanismo,
mesmo que o desprezem. Mesmo nas provações a problemas, ele continua com
o humanismo.
O Mestre disse: o educado busca virtude, o ignorante busca terra. O educado quer busca justiça, o ignorante busca vantagem.
O Mestre disse: um Educado procura o caminho, não um meio de
sobrevivência. Plante pra comer, e mesmo assim você terá fome. Aprenda, e
com certeza você terá um emprego. Mas o Educado se preocupa em
encontrar o caminho, e não se vai continuar pobre.
Ranyong perguntou sobre o Humanismo. O Mestre disse: fora de casa, aja
como se todos fossem convidados importantes. Cuide do povo como se fosse
um evento importante. Não imponha a ninguém o que não gosta pra si
mesmo. Não deixe o ressentimento pessoal se intrometer nas coisas
públicas ou nos assuntos particulares. Ranyong disse: não sou muito
inteligente, mas tentarei fazer o que o mestre recomendou.
O Mestre disse: o educado come sem exagero, mora em lugar simples, se
dedica no trabalho, fala com cuidado e busca boas companhias. Uma pessoa
assim gosta mesmo de aprender.
O bom governante, para Confúcio, governava através do exemplo e dependia, antes de tudo, da confiança do povo:
Zigong perguntou sobre o governo. O Mestre disse: fartura, segurança e
confiança do povo. Zigong perguntou: e se tirarmos uma? O Mestre disse:
tire a segurança. Zigong perguntou: e se tirarmos duas? O Mestre disse:
fartura. Todos morrem um dia. Se um governo tem a confiança do povo, ele
pode tudo. Mas sem essa confiança, ele não se mantém mesmo com
segurança ou fartura.
O Mestre disse: quem governa pela virtude é como a ursa polar; mesmo parada, as outras estrelas giram ao seu redor.
O Mestre disse: o povo fica desonesto e manhoso se é governado por
artimanhas e castigos. O povo fica envergonhado e dedicado quando é
governado pela virtude e pelos costumes.
Não parecem ideias sábias, que merecem a nossa consideração?
Sugiro a todos que continuem as leituras confucianas no link inicial, e termino com um dos grandes ditos de Confúcio, que lembra um certo pensador que viveu alguns séculos mais tarde:
Zigong perguntou: existe uma única palavra que possa guiar nossa vida? O
Mestre disse: reciprocidade. O que não deseja pra si, não faça aos
outros.
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