setembro 28, 2011

42. Artigo - curandeirismo

Com o começo do I Congresso Internacional de História Regional da UPF, foram publicados os anais eletrônicos do evento, com um texto deste que vos escreve. Minha contribuição trata da história do curandeirismo no Brasil e um estudo de caso.

Aos interessados, os anais do evento: http://www.upf.br/historiaregional/index.php?option=com_content&view=article&id=18&Itemid=21

Aos ainda mais interessados, farei a apresentação amanhã de manhã. Quem vier, verá...

setembro 13, 2011

41. A casa de Hitler nas montanhas - tombar ou destruir?

Para quem acha que o passado está morto, vai um exemplo de como ele segue vivo.

Apenas duas observações rápidas:

- Particularmente, sou a favor de manter o lugar. A monstruosidade do nazismo é importante demais para ser esquecida e, de certa forma, um lugar aparentemente tão inocente quanto Berghof faz parte do Terceiro Reich tanto quanto os campos de concentração. Afinal, parte da lição do nazismo é precisamente essa: Hitler não era um sujeito obviamente mau como o imperador Palpatine de Star Wars, que qualquer um percebe que não quer boa coisa. Ele podia parecer uma pessoa normal, um cara que gostava de sua dieta vegetariana, de cachorros, de passar uns dias na serra... e de ordenar a morte de milhões de pessoas. Os ditadores genocidas têm mais chance de ter a cara de Hitler que a de Palpatine, e não podemos esquecer isso de jeito nenhum. Então, se Berghof puder servir de lembrete, que fique lá.

- Quem seguir o link para a matéria original no Yahoo encontrará entre os comentários vários que defendem Hitler e o nazismo. Alguns poderiam dizer que é um horror deixar esses malucos pregando uma ideologia tão nociva - de fato, fazer defesa do nazismo é contra as leis brasileiras. Acho que aqui a lei erra, pois ver os neonazistas falando é a melhor garantia que temos de que o nazismo não volte: a cada frase que soltam, suas ideias parecem mais e mais absurdas e incoerentes...



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Uma montanha bávara à sombra de Adolf Hitler



Sessenta e seis anos após sua morte, a alma de Adolf Hitler assombra ainda hoje uma montanha da Baviera - os alemães não sabem o que fazer dos vestígios de sua casa; e alguns não a querem como curiosidade turística, nem como memorial.


A antiga residência de Hitler nos Alpes.

Bombardeada, dinamitada, desimpedida com máquinas, não resta muito de "Berghof", a residência favorita do Führer nos Alpes, que frequentava regularmente durante mais de dez anos antes da morte, num bunker em Berlim, em 1945.
As autoridades evitam indicar o caminho, e é só quando se está no local que se descobre, num desvio da pista de cascalhos, no meio de uma floresta de pinheiros, um pedaço cinzento de muro, meio perdido na montanha, acompanhado de um quadro explicativo.
É o único vestígio que leva à casa que conhecemos, principalmente, através de filmes amadores, que mostravam um Hitler sorridente no terraço, ao lado de Eva Braun, tendo ao fundo a paisagem idílica.
Situada a meio caminho de Oberzalsberg, a montanha que domina a aldeia de Berchtesgaden, na fronteira germano-austríaca, o lugar serviu de estada para os soldados americanos de infantaria, GI's, antes de sua partida, em 1995.


Fachada de 'Berghof', na montanha de Berchtesgaden

"Quando os americanos estavam lá, não havia problemas," afirma Ingrid Scharfenberg, 80 anos, que dirige desde o final da guerra a pequena pensão "Zum Türken" bem ao lado de Berghof, e que, hoje, está mal acomodada, em relação à notoriedade da vizinhança.
"As pessoas dizem que esta é a montanha nazista e que todos em Berchtesgaden são nazistas. Mas não se pode detestar dez gerações simplesmente porque (Hitler) viveu aqui", comenta ela.
"Não há peregrinações neonazistas aqui", assegura por sua vez o diretor da agência de turismo, Michael Griesser.
"Os neonazistas são raros", afirma Axel Drecoll, 36 anos, historiador do Centro de Documentação de Obersalzberg, que apresenta uma exposição sobre Hitler e a ditadura nazista.
Acontece que, junto da casa, "um pequeno número de pessoas acendem, em segredo, velas e depositam flores, por ocasião do aniversário, ou para lembrar a morte" do ditador, acrescenta ele. Mas tudo é recolhido e jogado fora pelo porteiro do Centro, que fica próximo.
Se o caminho em direção à residência de Berghof permanece quase confidencial, não acontece o mesmo com a estrada que leva ao "Ninho da Águia", um chalé construído pelos nazistas no pico de uma montanha vizinha, oferecido de presente a Hitler pelo seu aniversário de 50 anos.
Às dezenas de milhares, os turistas pegam uma rota vertiginosa para beber aí uma cerveja e admirar a paisagem espetacular.
Para alguns, a aura do ditador envenena menos o Ninho da Águia do que a casa de Berghof, porque Hitler sentia vertigens, e ia pouco lá.
Para evitar qualquer curiosidade doentia, o Estado da Baviera retirou de helicóptero, do Ninho da Águia, alguns móveis de época que ainda estavam no local.
Numerosos historiadores, entre eles Egon Johannes Greipl, chefe do Departamento bávaro de Monumentos Históricos, gostariam de ver tombados todos os sítios nazistas da região.
"Ninguém pensaria em demolir as ruínas de Olímpia (na Grécia) a pretexto de que tudo ficaria mais bem apresentado num Centro de documentação", afirma Greipl. "São testemunhas in loco da História", que falam de um período crucial e de um fato, os crimes nazistas".
Greipl considera incoerente que a Baviera tenha incluído, secretamente, durante décadas, esses locais numa lista de sítios históricos protegidos, antes de decidir "por motivos políticos" varrê-los do mapa.
"Atribuir um estatuto cultural particular à casa Berghof" e a outras ruínas nazistas, entre elas 12 quilômetros de bunkers e de túneis sob a montanha, "serviria apenas para encorajar a construção de uma espécie de trilha do nacional-socialismo", replica Walter Schön, funcionário local encarregado do patrimônio e número dois do ministério da Justiça da Baviera.
Charlotte Knobloch, dirigente da comunidade judaica de Munique, lamenta igualmente qualquer ideia de tombamento.
"De qualquer forma, não resta nada" de Berghof e é preciso evitar fazer da casa um alvo de peregrinação neonazista, segundo ela.
Drecoll, por sua vez, tem menos medo de atrair grupos de extrema-direita do que ver os locais desvirtuados numa espécie de "Disneilândia do nazismo", fora do contexto histórico.
"Claro, é preciso satisfazer a curiosidade dos turistas, mas sem cair no sensacionalismo", diz ele. A grande dificuldade é evitar que "a pesquisa histórica ceda lugar ao kitsch comercial".

setembro 06, 2011

40. Calígula e seu cavalo

Preconceitos, por sua própria natureza, não são exatamente muito racionais. Por exemplo, a minha posição a respeito dos idiomas é descritivista: a linguagem é uma convenção entre seus usuários e, portanto, a maioria deles não pode estar errada. Se os dicionários dizem drible e a maior parte dos brasileiros diz dible, quem está com a razão são as pessoas nas ruas, e azar dos dicionários e do professor Pasquale. Mesmo assim, fico com vontade de subir pelas paredes quando ouço algumas dessas variações, como alguém dizendo enterter ao invés de entreter, císnei no lugar de cisne ou xalxicha no lugar de salsicha. Não faz muito sentido, mas é assim que as coisas são.

Em relação à história, as pessoas também falam o que querem o tempo todo, com a diferença de que ela envolve questões de veracidade, e não (só) de convenção. A maior parte do que se ouve são chavões que, no melhor dos casos, são apenas em parte verdade, e no mais das vezes são pelo menos 99% de bobagem. Coisas que você já deve ter ouvido também, do tipo "o Brasil não dá certo porque foi povoado por criminosos", "os chineses não têm tradição política porque ficaram milênios seguindo os imperadores", "o Ocidente é mais avançado graças à sua democracia", e por aí vai. Infelizmente, separar as meias verdades e os mitos nesses casos exige uma análise mais ou menos complexa.

O que realmente me incomoda, voltando à questão dos preconceitos, são aquelas bobagens que qualquer um poderia se dar ao trabalho de conferir se são verdade ou não. Aquelas que não envolvem grandes questões macrohistóricas, mas as pequenas anedotas que as pessoas soltam para ilustrar algum argumento.

Uma delas, que tive o desprazer de ouvir recentemente pela enésima vez, é do tipo que certamente todos já ouviram: "Incitatus, o cavalo do imperador romano Calígula, foi cônsul". É uma afirmação tão comum e corriqueira que não parece haver motivo para duvidar: afinal, Calígula era louco, e loucos não fazem coisas como dar altos cargos para seus cavalos?

Pena que é tão simples testar a veracidade do consulado de Incitatus. Vamos começar com os fatos básicos: Caio foi imperador romano de 37 a 41, e apelidado de Calígula porque, quando pequeno, seu pai, o importante general Germânico, fazia Caio acompanhá-lo pelos acampamentos militares vestido de soldadinho, e o uniforme da época incluía as caligas, sandálias usadas pelos soldados. Daí Caio ser até hoje mais conhecido como "sandalinha" - seria mais ou menos como termos um presidente filho de militares apelidado de Coturninho.
Seu curto reinado está terrivelmente mal documentado hoje em dia - temos pouquíssimos relatos escritos por pessoas que conheceram o imperador, sendo o mais importante deles a Embaixada a Caio, escrito por Fílon de Alexandria, judeu que liderou uma delegação ao imperador para reclamar dos maus tratos que a população judia estava sofrendo na metrópole egípcia.
Tirando o texto da Embaixada, sobram as obras dos historiadores. Os autores mais próximos desse período foram Suetônio e Tácito, que escreveram no começo do século 2, ou seja, quando todos os envolvidos já estavam mortos há tempo. Para complicar, não temos o relato de Tácito sobre Calígula: foi encontrada apenas uma cópia medieval das obras de Tácito, bastante incompleta, e uma das partes que faltam é exatamente a que mostrava Caio no poder. Sobra Suetônio. Ele não era exatamente um historiador, mas algo como um biógrafo sensacionalista, interessado nas anedotas bizarras, de preferência as sexuais - é culpa de Suetônio, e da falta quase completa de alternativa a ele, acharmos que tantos dos primeiros imperadores romanos eram depravados. O quanto ele disse de verdadeiro, o quanto inventou e o quanto escreveu boatos como se fossem pura verdade é um problema grande e difícil de resolver.
De volta a Calígula: as fontes que temos - Fílon, Suetônio, uma que outra passagem de Tácito e as obras de historiadores bem posteriores - são unânimes em afirmar que ele foi um péssimo imperador. Do tipo que declarou ser um deus, matava seus oponentes sem muita piedade, entre outras coisas mais. Talvez tenha tido as irmãs como amantes, se você acha que Suetônio merece confiança quanto a isso. Enfim, dois mil anos depois, é difícil saber ao certo se ele foi realmente louco ou se isso era apenas a explicação dada para justificar suas arbitrariedades - Calígula pode ter sido "apenas" um deslumbrado pelo poder, como os Saddams e Kaddafis dos nossos tempos.

Mas uma coisa que podemos dizer que ele não fez foi nomear seu cavalo cônsul. Eis o que Suetônio disse a respeito (Vida de Calígula, 55, 3): "Na véspera dos jogos circenses, ele enviava seus soldados para ordenarem a vizinhança a fazer silêncio a fim de que o cavalo Incitatus não fosse incomodado. Além de um estábulo de mármore, uma manjedoura de marfim, cobertores de púrpura e um colar de pedras preciosas, ele ainda deu ao cavalo uma casa, um conjunto de escravos e mobília, para melhor recepção dos hóspedes convidados em seu nome. E também se diz que ele planejava torná-lo cônsul".

"Se diz" e "planejava" = o cavalo não foi cônsul. É possível discutir se Incitatus realmente recebeu seu estábulo de mármore e tudo o mais, e, se recebeu, qual a motivação de Calígula - não é tão difícil imaginar um ditador convidando as pessoas a falar com seu cavalo e outras humilhações do tipo, sem que o ditador seja necessariamente insano. Talvez ele tenha dito aos políticos romanos "aposto que até meu cavalo faz o serviço de vocês", e daí começaram os boatos.

Mas vamos dizer isso mais uma vez, para garantir: Incitatus nunca foi cônsul...