julho 29, 2011

34. Indianos e brasileiros - uma pequena nota

Via de regra, o que mais me interessa no estudo do passado são as pequenas diferenças. Piadas que hoje parecem estranhas, gestos difíceis de compreender, coisas hoje impensáveis sendo ditas com a maior naturalidade - por exemplo, não faz tanto tempo assim que todo o mundo tinha ministérios da Guerra, não da Defesa. Talvez um eufemismo, talvez um legado da destruição das duas guerras mundiais - em todo caso, uma pequena mudança que revela alguma coisa. Enfim, pequenas chaves para tentar entender o que é experimentar a vida e compreender o mundo de maneiras diferentes da nossa.

(O que não é nenhuma inovação - esse princípio de pesquisa foi expresso já faz algum tempo por Robert Darnton, em um livro fascinante chamado O grande massacre de gatos. Algumas pessoas, discípulos de Fernand Braudel, poderiam dizer que o que realmente importa são as continuidades, aquilo que permanece constante ao longo de muito tempo como o leito do mar, e não os acontecimentos, que não seriam mais que a espuma das ondas. Mas escolhi meu caminho, sem ter pretensões de conhecer o caminho.)

Mas, às vezes, as semelhanças podem ser igualmente surpreendentes. Uma delas ocorre entre o Brasil dos últimos anos décadas séculos e uma passagem curiosa do Arthashastra (aproximadamente, Tratado de política), uma obra indiana do final do século -4, atribuída a Kautilya, conselheiro de Chandragupta Maurya, conquistador do norte da Índia. Em geral, pensamos na Índia como uma terra de espiritualidade exótica, mas o Arthashastra mostra um realismo prático muito mais maquiavélico que Maquiavel. Nesta passagem, Kautilya avisa o governante sobre não confiar em seus funcionários:

Todos os empreendimentos dependem das finanças. Daí que toda a atenção deve ser dispensada ao tesouro... Há cerca de quarenta maneiras de desfalque [segue-se uma descrição detalhada destas]. Assim como é impossível não sentir o gosto do mel ou do veneno quando estão na ponta da língua, assim também é impossível que um empregado do governo não usufrua um pouco dos rendimentos reais. Assim como não é possível saber se um peixe que se move na água está dela bebendo ou não, assim também não é possível descobrir se os empregados que trabalham no governo furtam o dinheiro.
É possível observar os movimentos dos pássaros que voam no céu, mas não é possível apurar os movimentos dos empregados do governo com intenções ocultas.
(extraído de Heinrich Zimmer, Filosofias da Índia, p. 100)

Se Kautilya visse o Brasil de hoje, suspeito que só faria uma alteração no texto: aumentar as maneiras de desfalque...